Uma visita ao cinema arte de Godfrey Reggio

Em Visitors, Reggio realiza um filme que nos assiste ao tempo em que o assistimos

Júlio Fisherman
ORNITORRINCO site
4 min readNov 23, 2017

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Godfrey Reggio

Dentro ou fora das cercanias hollywoodianas, Godfrey Reggio é um cineasta absolutamente original. Seus filmes se encontram bem distantes da ideia de cinema com o qual o público está acostumado. Suas ‘narrações’ não têm história, não têm diálogos ou depoimentos, não se estruturam num enredo. Não há concatenação de ações em sequências causais e praticamente nunca há palavras imprimindo sentidos diretos. Um cinema que não pede a decodificação de códigos e solicita acima de tudo a experiência estética e a elaboração dos sentidos.

Tudo se condensa polissemicamente na coordenação de imagem e som. Neste binômio, o cinema de Reggio conta com uma valiosa pareceria e cooperação artística: trilhas sempre compostas pelo músico erudito Phillipe Glass. Glass atinge conectar sua música, inteiramente instrumental, de modo harmoniosamente pulsante com a provocativa estética de Reggio, resultando num cinema cognitivo e extremamente sensível.

Além disso, as imagens de Reggio não se sucedem com um corte dinâmico ou característico. Toda a percepção é mais lenta. Mesmo quando retrata em alguns de seus filmes a velocidade alucinante de nossos tempos, com imagens da agitação do dia a dia de grandes metrópoles, o faz desvelando sentidos inconscientes e profundos. Reggio enquadra e foca bem o que registra, sem fossilizar o que captura e exibe.

Mais conhecido pela trilogia Qatsi (Koyaanisqatsi [1982], Powaqqatsi [1988] e Naqoyqatsi [2002]) — que contou com a fotografia de Ron Fricke (Baraka e Samsara) — o cineasta estadunidense lançou em 2013 seu último filme até aqui, o majestosamente impactante: Visitors. Apesar de brilhante, a película não alcançou sair de um certo circuito nem é devidamente reconhecida como um dos filmes mais singulares já produzidos neste novo século.

Não são muitos os artistas que conseguem tomar o tempo em tantas de suas frações. É o que se vê e se sente em suas tomadas ‘afixadas’ em faces e gestos humanos presentes em Visitors. A exibição serena e pausada de rostos humanos atentos e destacados de qualquer paisagem revelam bem a riqueza dinâmica do tempo mesmo no aparentemente estático. Nesta ‘investigação’ demonstra ainda que o fluxo de sua passagem contém mais vida e mistério que se imagina.

Estas tomadas parecem dilatar o próprio momento, como se contassem a história de um segundo de instante num intervalo de tempo muito maior que o próprio segundo. Soam ecoar, ao avesso, a observação de Borges: “Dizem-me que o presente, o specious presente dos psicólogos, dura entre uns segundos e uma minúscula fração de segundo; é o que dura a história do universo”.

Além disso, ele inverte a ‘lógica regular’ do modo como é percebido o transcorrer do tempo ao estender a apreciação de ações humanas com pouca ação, como nas mudanças de fisionomias de seus personagens, e apressá-lo para lentos ciclos da natureza, como quando num detido movimento de câmara acelera a passagem das nuvens ao tempo em que vai revelando a inscrição de “Novus Ordo Seclorum” [Nova Ordem dos Séculos] num prédio que é exibido magistralmente de modo imponente e brutal.

O cinema de Reggio subverte o próprio ato de assistir, exigindo uma postura ativa onde a imaginação deve preencher as múltiplas determinações e sutilezas que se escondem nas simples aparências incompletas, sejam de rostos, sejam de paisagens naturais ou construções humanas. É, aliás, uma demanda praticamente ininterrupta. Sempre desafiando que se penetre mais fundo no prosaico, que se perceba o poético na realidade de seu registro filmográfico.

Mesmo onde flerta com a imagem como arquétipo, símbolo, Reggio deixa aberta janelas para a reconfiguração imaginativa e as possibilidades desta de reaprender a ver a realidade do que está dado. Seu plano metalinguístico de espectadores encarando numa sessão de cinema a gorila Triska, apresentada anteriormente no filme, bem o demonstra.

Sem desenvolver a construção de imagens e sequências icônicas artificialmente construídas, típicas do universo da ficção, visto como documentarista, Reggio também não costura uma narrativa completa, encerrada.

Em Visitors, não só pelo título, mas certamente é ‘a pista’, ele reclama que cada um teça sua reflexão sobre nossa condição tanto de seres com realidade interior na aventura da vida, como enquanto entidades de uma mesma espécie no planeta — condição que é a constituição comum e fonte primária de toda nossa identidade, assim como origem da busca por conhecimento sobre nossas existências e vivências.

Artista inquieto, arguto, observador incansável, auscultador intuitivo, espírito interessado em gestar e parir uma experiência estética transfiguradora, Godfrey Reggio é um cineasta cuja a elaboração é antes de mais nada na linguagem. Toda a sua atividade é no sentido de oferecer um recorte e um ensaísmo audiovisual insólito, incomum e surpreendente para situações e fenômenos tidos como ordinários.

Aqui o trailer de Visitors:

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