all we’re looking for is love from someone else

Victor Tanaka
orquestra de desconcertos
9 min readAug 6, 2020

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Sofia Ruiz Ugalde

Antes de eu virar a esquina, ele já me esperava ali, como se tivéssemos um encontro marcado que não estava em nenhuma agenda, tampouco na minha cabeça, de onde nada deveria sair. Mas lá estava ele, de os olhos grudados em mim, como se devesse me aguardar ali mesmo, na frente daquela barbearia completamente inadequada para um ponto de encontro. Eu avancei mais alguns passos, na esperança de que o olhar dele, atraído por qualquer coisa mais interessante, me deixasse caminhar para dentro de seu esquecimento, mas ele me seguiu com o olhar persistente até que nos cruzássemos, e aí a mão dele ultrapassou o limite social invisível que inconscientemente impomos entre nós e os desconhecidos, e pegou minha mão.

Até então eu estava somente inquieta, mais curiosa que incomodada, mas quando o senti capturando meu pulso, detendo-me à sua frente, fiquei assustada. Olhei para ele abruptamente, como endossando minha firmeza, mas não havia necessidade, pois em seu semblante não havia nada mais que doçura. Ele sorria para mim com uma delicadeza que eu não entendi, mas que me fez parar para ouvir o que ele tinha a dizer. Então ele deu um passo na minha direção e disse que já estava sentindo minha falta. Eu nunca tinha ouvido qualquer caso de alguém que, possivelmente, chegou a sentir falta de um desconhecido, então supus que, em sua cabeça confusa, eu era outra pessoa. Disse para ele, de forma bastante educada, que estava havendo um mal-entendido, enquanto tentava desvencilhar meu braço de suas mãos finas e carinhosas, que não estavam apertando-me com força, estavam até frouxas em volta de mim, como se não quisessem me machucar, então percebi que eu não conseguia me soltar, na verdade, porque eu não queria. Ele riu, achando que eu estava iniciando algum jogo que, no mais alto nível da minha incompreensão, eu não fazia ideia, e então começou a falar de planos previamente marcados que deveria estar repassando com alguma outra pessoa, e de uma coisa eu tinha certeza, não era eu. Se quisermos pegar o ônibus, ele dizia, temos que nos apressar, pois ele só passa a cada duas horas. Ele era bem bonito, não muito, mas de uma beleza diferente, não sei explicar, é do tipo que não chama a atenção de muitas garotas por aí, mas foi o suficiente para ter dentro de mim um efeito de empatia e de mínimo interesse. Até pensei na possibilidade de sentar-me ao seu lado em um ônibus para qualquer lugar, com certeza seria uma reviravolta interessante na minha ida aborrecida até a casa da Marcela, mas aí eu estaria tirando o lugar de alguém, muito sortuda por sinal, que herdaria minha tristeza. E foi pensando nessa outra que puxei minha mão, reivindicando meu domínio sobre ela, e disse que ele deveria ir procurar a pessoa certa, pois nós não nos conhecíamos. Mas então ele franziu as sobrancelhas, surpreso com a minha aparente rebeldia em reconhecê-lo, e não tirou os pés da minha frente, nem os olhos do meu rosto, nem meu nome de sua boca: Marina… E era mesmo o meu nome, isso tive de reconhecer. Mas não vindo daquela boca, não pronunciado por aquela voz que, apesar de bonita, nunca havia ressoado antes perto de mim. Confirmei: sou Marina. Ele confirmou minha confirmação: claro que é, minha Marina, minha namorada. Eu ri da situação absurda e olhei para os lados na esperança de encontrar alguém rindo por trás de algum poste ou filmando o momento em que eu, marina-ninguém, caí em uma pegadinha estrategicamente planejada para me humilhar. Então me lembrei que ninguém perderia seu tempo querendo fazer isso comigo. Fiquei, consequentemente, triste pela sensação de ter diante de mim um rapaz bonito, visivelmente apaixonado pela minha figura, mas por puro engano e ilusão. Abaixei os olhos, conjecturei um pouco olhando para meus sapatos perto dos dele e achei melhor cortar aquele desengano de uma vez por todas, pedi desculpas, não sei por que pedi desculpas se não fui culpada de nada, e disse que ele realmente estava errado, pois nunca tive namorado e seguiria não tendo. Dei-lhe as costas e saí andando, quase certa de que aquela situação constrangedora já havia ficado no passado, mas na esquina seguinte dei-me conta de que estava nada certa. Virei-me por uma última vez e lá estava ele, parado no mesmo lugar, com uma decepção comovente estampada no rosto frágil, esperando justamente que eu virasse, do jeito que eu acabara de fazer, e provavelmente esperando que eu voltasse, como eu comecei a fazer, e me colocasse diante dele dizendo que aquela brincadeira realmente não tinha graça, que ele era meu namorado e podíamos ir tomar nosso ônibus, mas isso eu não podia fazer porque não era verdade, então me coloquei à sua frente e fiquei esperando qualquer iniciativa. Não tem graça, ele disse, com a mesma seriedade com a qual eu sustentava minha versão: não, não tem graça, nós não nos conhecemos e isso não é engraçado. Então ele retirou o celular do bolso e me mostrou logo a primeira tela: a imagem de seu plano de fundo era eu. É muito estranha a sensação de ver a si mesma em um lugar que você com certeza nunca visitou, e naquela foto eu estava em um parque que não me despertava lembrança alguma. Não consegui tirar os olhos da imagem, encantada com a semelhança com a qual meu rosto se ligava ao outro. A tela do celular apagou, e no lugar da foto refletiu-se, na tela escura, meu próprio rosto inquieto, longe de parques, despida de sorriso. Ele colocou o aparelho de volta no bolso e disse: sua vez, me mostre suas fotos. Achei invasiva a forma como foi pedido, mas era para uma boa causa — ele queria saber se, da mesma forma, seu rosto aparecia no meu álbum de fotos, e eu estava disposta a mostrar-lhe que não. Abri minhas fotos e fui passando uma a uma. Ele tentava se reconhecer em todas e ficava visível, a cada nova imagem que surgia, como crescia seu desapontamento. Pediu-me para parar em uma foto específica, que havia lhe chamado muito a atenção, e também a minha, por ter sido meio sempre misteriosa também para mim: era eu, muito bem vestida, descentralizada em frente a um fundo branco, sorrindo, e meu braço, repousado ao lado de meu corpo, terminava nas minha mãos abertas de dedos curvados, dando a impressão de que eu segurava as mãos de alguém inexistente. Eu devia estar aqui, ele disse com declarada inquietude, eu estava com você nesse dia, no noivado de sua prima, lembra? mas por que não estou mais aqui? De fato, aquela foto havia sido tirada no noivado de minha prima, mas eu tinha certeza de ter comparecido àquele evento sozinha, ainda que, no momento da foto, eu pudesse ter sentido qualquer presença sobrenatural, bastante confortante perto de mim, que me fizera inconscientemente ficar de mãos dadas com o vento. Sem dizer nada, passei mais algumas fotos e ele me deteve em outra, que também sempre guardei com muito carinho e determinada desconfiança: a festa de quinze anos da Marcela — vários casais belamente vestidos e, em meio a eles, eu dançando sozinha com o ar restrito do salão de festa. Ele apontou para minha figura nada preocupada com a solidão e disse: de novo, Marina, eu sumi da sua foto. Forcei o funcionamento da minha mente, certificando-me de que eu havia ido sozinha, mas talvez eu estivesse mesmo acompanhada, só não conseguia me lembrar com quem, e nem qual foi o contexto que me fizera dançar sozinha no momento da foto. Mostrei-lhe mais algumas e surpreendi-me, pois nem mesmo eu havia percebido como era solitária em tantos eventos em que eu não deveria estar sozinha, e em várias dessas ocasiões ele apontou para minha solidão e reforçou que estivera ali comigo, mas havia sido misteriosamente descartado. Abaixei o celular, mais confusa que ele, talvez, e perguntei-lhe o nome. Felipe. Por algum motivo aquele nome me soou bem e familiar, mas tive a impressão de que se ele tivesse dito João, Heitor ou Alfredo o efeito sobre minha sensibilidade teria sido o mesmo. Perguntei a quanto tempos estávamos teoricamente juntos. Ele disse: seis anos. Era tempo demais para não se reter na mente nem mesmo um segundo e refleti brevemente se isso era possível. Perguntei, por fim, quando foi a última vez que nos vimos. Ele riu impaciente, talvez irritado por ter de me explicar o óbvio, e disse que ontem à noite tínhamos ido ao cinema. Na noite anterior eu tinha mesmo ido ao cinema e contei-lhe que fui ver La La Land. Ele confirmou, estivera comigo, e acrescentou que eu chorei continuamente do meio até o final. Eu confirmei: chorei litros e até fui dormir chorando, e só de pensar naquilo sentia vontade de chorar de novo. Mas meu choro durante o filme havia sido motivado mais pela identificação, pela impossibilidade de se terminar abraçado com a pessoa que se quer antes do The End aparecer na tela. Essa, afinal, tinha sido minha vida até aquele momento. Ele começou a relembrar de como tentou me acalmar durante o filme, de como se fez presente em cada cena, principalmente naquela em que eles cantam ao piano, minha cena favorita. Foi naquele momento em que, segundo ele, suas mãos pousaram sobre meu ombro e percorreram meu braço como os dedos de um pianista sobre as teclas brancas e pretas, aí chegaram à minha mão, e agora mesmo eu sentia nas minhas mãos inquietas, contidas e inseguras o calor das mãos delicadas dele massageando a articulação dos meus ossos, aí ele disse que se curvou até mim e cantou um verso da música no meu ouvido: it’s love… E eu completei, pois era o verso que, de todos que compunham a canção, era o que eu mais desejava que cantassem para mim: yes, all we’re looking for is love from someone else. E ao cantar novamente para ele, que era o possível someone else de quem eu podia buscar amor, senti as pernas bambas, e talvez o calor que eu sentia ao redor de mim durante a sessão, e que eu creditava ao peso esmagador da solidão, pudesse ter sido, na verdade, ele, somente ele me enchendo de carinhos e galanteios, mas que eu havia, por algum jogo maligno do destino, esquecido. Naquela mesma esquina onde eu nunca esperaria encontrar meu amor, ele me pegou pela cintura, e eu, ao mesmo tempo comovida com a intensidade daqueles sentimentos e culpada por ter esquecido de alguém que me jurava tanto sentimento, me deixei ser pega por entre seus braços e que ele me dissesse que não tinha problema, não havia por que chorar, ele poderia passar o resto da vida relatando todos os momentos que passamos juntos, me fazendo lembrar aos poucos de cada cena que protagonizamos, e eu agora estava convencida, disposta a ouvi-lo pelo tempo que for jurar amor e contar tudo que fizemos e todas as vezes em que me fizera chorar daquele jeito. Ele reforçou o aviso a respeito do ônibus, que ia partir em breve, e eu já nem lembrava que tinha de ir à Marcela, iria com ele para onde quer que fosse, com meu novo velho namorado, e aceitei. Seu celular tocou, ele pediu um minutinho e atendeu. Eu aproveitei para conferir meu reflexo na vitrine da barbearia e me senti uma palhaça chorando na frente do barbeiro, que estava sentado lá dentro olhando a rua. Quando ele terminou a ligação, me virei sorridente, radiante, renovada, mas agora quem estava de rosto interdito era ele, que ainda nem havia distanciado o celular do ouvido quando derramou a primeira lágrima. Desculpa, ele disse, eu não queria, mas… Eu ia começar a perguntar o que estava acontecendo, mas ele se jogou aos meus pés, comprimido por uma culpa intensa, olhou para mim com os olhos escorrendo tempestades e jurou que não fizera por mal: É que você é tão parecida com ela, explicou, você mesmo viu na foto, vocês são iguais, eu não queria, juro que não queria… Levantou-se, deu-me um beijo no rosto, que me partiu ao meio a bochecha vermelha, e correu em busca da Marina-certa, que infelizmente não era eu. Me vi na mesma esquina em que, em questão de minutos, um amor nasceu e morreu. Aquele desconhecido quebrou partes de mim que eu nem sabia que existiam, porque de fato, não existiam, e agora eu sabia que era possível sentir falta de algo que nunca se teve. Na verdade é o coração sussurrando que é falta daquilo que ele sabe que a gente merece, aquilo que deveria estar junto nas fotos, ao nosso lado no cinema, planejando uma fuga a dois em qualquer esquina.

The end

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