R. do Sol nº 8, Sansara

Eis que vislumbrava o fim do recomeço. Já era tempo de abandonar a inércia desse movimento, para continuar a caminhar sem destino de chegada.

Alieksandr Míchkin
Os iNdiotas
4 min readNov 7, 2020

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Image by Peggy Choucair from Pixabay

45 anos. Um marco. O segundo ano (em cinco) de revolução solar em escorpião. Mais uma vez, um chamado à reavaliação profunda das coisas, sentimentos, relações e situações que já não serviam mais. Eliminar excessos. Abrir espaço para o novo. Uma nova temporada de despedidas, numa vida inteira de fixação nas experiências dos ciclos de vida e morte.

Crise.
Decisão.
Desapego.
Despertar.
Libertação.

No texto compartilhado por uma das irmãs, “autobiografia em cinco capítulos” do Livro Tibetano do Viver e do Morrer, acrescentou suas estrofes particulares:

“6. ando por uma rua diferente
procuro um buraco e não encontro
cavo um
me sinto desconfortável dentro dele
a culpa não é minha
nessa rua não tinha o meu buraco.

7. ando por uma nova rua,
reconheço um buraco na calçada,
sem cair e sem cerimônia
entro deliberadamente
de olhos abertos.
sei bem onde estou e que esse não é o meu lugar,
assumo e acolho a responsabilidade de me colocar ali
saio tranquilamente, mas…

…deixo o buraco triste,
pois acreditou que deixaria de ser buraco
se eu permanecesse lá.”

Sem perceber, se viu diante de uma mesma situação limite.
Sem perceber mesmo, ou deliberadamente?

Estar em vários lugares ao mesmo tempo.
Dentro e fora do buraco.
De um lado e do outro do espelho.
Tentar cobrir o maior número de possibilidades possíveis.
Atender a todos os chamados.
Semear, criar e exterminar expectativas.
Cansaço. Inércia. Clausura. Combustão.
Vôo.

Escolhas…

…quando escolher não existir mais buracos não é uma alternativa, do que abrir mão? Do quanto? A partir de qual momento?

EU (muitos)

Por favor, eu, me desobrigue
estar diante minha presença.
Sai e largo-me aqui:
Descrente das nossas crenças.

Sozinho, em companhia
das tuas, minhas agonias
que não se separam se mim,
dos muitos que fomos um dia.

Saio e deixa-me ir
que velo atento o teu sono.
Dos já, não tanto mais, inocentes.
De inconseqüentes insanos.

E trago-nos a minha mente
imagens de um outro agora,
memórias de um corpo dormente,
de um novo eu, que foi embora.

(Alieksandr Míchkin — 2000.02.07)

Passou o texto a limpo. Revisou o tempo, os modos.
Pontuou. Retirou vírgulas. Omitiu reticências.

Decidiu que já era hora, como se sentisse o choque térmico de cruzar uma das portas da antiga casa. Uma porta de saída daquele museu. Labirinto sem fim de sentimentos, lembranças e associações emocionais revisitadas.

A propósito, chamar a casa de antiga, usar uma analogia de retorno, de visitas fortuitas, de reencontro, era sempre muito conveniente na delimitação da distância imaginária que desejava manter de si mesmo.

…era até possível crer na ideia de que, uma vez, tivesse saído de uma casa que fosse. Mas a casa, jamais o havia abandonado. Nunca. E essa ideia de separação a essa altura já parecia por demais, ridícula. A carapaça sólida que carregava nas costas, sempre foi descartável. Substituída, à medida que o crustáceo ermitão se expandia.

Nos períodos de muda, vulnerabilidades expostas. Era comum perder a noção do tempo num mergulho de proteção que acreditava necessário e desejava sempre tão profundo. Foi quando a consciência da falta de oxigênio no juízo, o impulsionou para longe da paralisia, antes que se tornasse irreversível.

Crescer, não caber mais em sí, sempre doía.

Por isso, o apego àquela estrutura calcificada. À ideia do recomeço. Como se a estrutura de si, tivesse qualquer coisa a ver com aquele peso morto. E na intenção de enterrar de vez o assunto, deu a luz a um poema novo:

Ao pé do ouvido

Dialogar com a morte
muito me interessa.
Com cada uma delas.
Pois falar sozinho
só me aponta o fim
como único destino.
Nem sempre doce,
sua voz me conta
que a travessia
apenas é um trecho
da jornada
e sendo linha que
nunca acaba,
bifurca
em possibilidades de vida.
E que, cada uma delas,
uma após outra,
só começa a partir
do ponto em que
a outra termina.

Alieksandr Míchkin — 2020.02.24

Se deu conta que a carcaça que chamou de recomeço, já não mais o comportava. Quando deixou de servir? Quando, na linha daquele tempo, deixou de ser começo?

Quando encontrou no desapego o aliado para suas metamorfoses.
Quando encontrou o limite entre a autotransformação e a autodestruição.
Quando decidiu que os mistérios do tornar a findar deixaram de ser uma ameaça.

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Alieksandr Míchkin
Os iNdiotas

Revisitando lembranças para mudar a visão do passado. Insistindo em acreditar que a idiotice é o caminho para a felicidade.