A revolução solar
Não era só uma questão de coragem. Era necessário muito mais que culhões para despir-se de si mesmo.
Ao longo dos últimos 10 anos, tinha deixado à míngua um de seus arquétipos mais antigos.
Desistir. Esse era um de seus padrões mais repetitivo.
Passando fome e sede, "esse um" dele, regrediu até que não fosse possível identificá-lo em nenhum ato, pensamento ou desejo.
Seguiu em frente sem pestanejar.
Na alegria e na tristeza do dia-a-dia.
Na saúde e na doença das intenções.
Na riqueza e na pobreza do altruísmo.
Errou e acertou. Cresceu por um objetivo maior. Construiu. Criou vida. E por isso, não havia o que pudesse ser questionado. Fosse se sentindo meio cheio, ou meio vazio. Não importava. A motivação era nobre, e a escolha diária de persistir se sustentava na sua capacidade de transformação.
Até que a morte, enfim, se apresentou.
Vestindo a roupa saí
Desci as escadas, pernas apressadas,
o portão abri…
Subindo a rua, ainda de costas nuas,
na calçada cuspi…
Apertei o passo, e no descompasso,
tropecei, caí…
Me ergui num salto, e de sobressalto,
me afastei dali…
Me esgueirei nos cantos, por todos, por tantos,
quantos me espremi…
Andei mais um pouco, e seu grito rouco,
outra vez ouvi…
Sem qualquer virtude, o mais rápido que pude,
me apressei, corri…
E olhei pros lados, olhos assustados,
loucos pra dormir…
Quis sonhar de novo, fui o meu estorvo,
por não conseguir…
Por sentir tão perto, que me fiz incerto,
do que não senti…
E nem sei se errei. Os erros é que deixei,
de admitir…
Não voltei atrás, fui buscar a paz,
que me prometi…
Refiz meu caminho, e agora sozinho,
me obrigo a seguir…
Vou seguir comigo, sou meu próprio abrigo,
volto a me despir.(Alieksandr Míchkin — 01.09.00)
Fazendo as malas, se percebeu no mesmo e velho padrão de antes. Se deu conta de que ele nunca esteve ausente, e havia sim, se sofisticado.
Sorrateiro, ganhou forças, fazendo-o desistir não mais da conquista das coisas, mas de si mesmo.
Saiu do lar, levando a casa antiga nas costas para buscar construir um novo.
Pela primeira vez, sozinho. Acreditando que tantas referências que tinha ti(si)do um dia, haveriam de lhe servir de lastro.
As primeiras semanas, terríveis. Chorou. O vazio ocupava um espaço imenso. No ambiente sem móveis, sem cara, ainda sem vida. Na nova rotina sem risos, daquelas paredes brancas cheias de silêncios, medos e ausências.
Clamava por serenidade e lucidez, nas preces que já se tornavam diárias. Vestia a calça de monge. Conectava-se às pedras, aromas, aos astros. Adormecia no chão.
Foi quando a primeira orientação veio:
— Tenha fé!
E assim repetiu copiosamente, sempre que a culpa pelo abandono daquele, que havia deixado para trás, o atormentava. E então, a segunda:
— Seja grato!
Assim, agradeceu ao universo pelo que tinha se tornado e pela oportunidade que se apresentava a partir dalí, todos os dias, de se reinventar e redescobrir o outro. E por fim, a terceira:
— Seja íntegro!
E assim compreendeu, que o propósito de girar e equilibrar pratos não fazia mais o menor sentido.
Percebeu que o vazio já cedia lugar a si mesmo…
Constatou:
— Não tenho pratos!
Sorriu.
E a espiritualidade sorriu de volta, estendendo-lhe a mão.
Começava a reconstruir a casa. Desta vez, de dentro pra fora. Retomando uma nova consciência de si.
— … volto a me despir.
Recordou.
O ascendente em escorpião da revolução solar naquele ano, não deixava mesmo outra alternativa. Virou a página.
Seguiu na absoluta certeza de que o destino daquela história, tão bonita, jamais seria o fundo de uma gaveta, ou uma prateleira empoeirada.