Av. Dezoito de julho nº 75

Depois de muito tempo, resolveu colocar de vez os pés na antiga casa novamente.

Alieksandr Míchkin
Os iNdiotas
3 min readOct 30, 2015

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Image by Peter H from Pixabay

Sempre que podia, passava na frente do imóvel, mas nunca se dava o trabalho de entrar. Apenas dava uma olhadela através dos vidros embaçados da janela. Exercitando um ritual tímido de demarcação de território, de preservação de uma memória. Buscando uma referência.

Cruzou a porta de entrada uma vez. Arriscou alguns tímidos passos, passando os dedos pelos móveis empoeirados. Escreveu o nome repetidas vezes no mesmo lugar, na esperança de que a poeira não o cobrisse. Que pudesse encontrá-lo lá, numa próxima vez. Gostou do cheiro de ócio e lembranças guardadas que pairava alí. Ainda havia vida pulsando ali dentro e isso fazia com que se sentisse mais vivo do lado de fora também. Mas, um chamado da rotina sempre o tocava apressado de lá…

Durante aproximadamente 10 anos, este foi o seu movimento. Incomodava o fato de não sentir vontade de entrar. Atribuía a si mesmo, uma espécie de ingratidão. Uma mistura de negligência e indiferença. Mas como, se momentos tão intenso tinham se passado alí? Como, de um momento para outro, o interesse, o compromisso, a vontade, tinham ido embora? Cansou de tentar encontrar explicações… mesmo porque, seriam apenas justificativas, e jamais uma motivação que o fizesse sentir-se diferente.

Apenas se aceitou na condição de abandono que impôs àquela casa, sem culpa. Agarrando-se ao princípio da impermanência, para se convencer que as vontades deveriam se manifestar, assim como em certos fenômenos da natureza, de forma cíclica. Mas nunca desapegou por inteiro.

Por isso, de vez em quando, quando se dava conta, já estava novamente cara a cara com a porta. E agora, talvez, fosse o momento.

Nem pensou… E entrou.

Burro, cego e inconsequente

Porque tudo é imbecil,
do sorriso leso
de uma boca sem dentes
aos passos lerdos
de um louco demente
e até mesmo eu
se me sinto contente.
Porque o mundo é idiota
com a hipocrisia
sempre aparente
a falsidade desumana
de sua gente
pois talvez até eu
ainda me julgue inocente.
E é medíocre o que ama,
porque um dia amando,
se achou valente.
Por deixar para trás
um rastro de amor reticente.
Assim é, como nós:
burro, cego e inconsequente.

(Alieksandr Míchkin — 18.07.1997)

Sentado no chão, encostado na porta do guarda-roupas, folheava o calhamaço de papeis escritos à mão. Páginas amareladas de inúmeros cadernos. Os originais.

Registros e garranchos de noites de insônia. Já nem lembrava mais da última vez que tinha lido este texto. Mas lembrou que quando lia seus textos em voz alta, este era sempre um dos primeiros. Não por acaso seria o texto que o recepcionava naquela noite.

Julgava-se inocente. Sentiu-se um idiota.

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Alieksandr Míchkin
Os iNdiotas

Revisitando lembranças para mudar a visão do passado. Insistindo em acreditar que a idiotice é o caminho para a felicidade.