Quarta-feira, 12h45
Cruzou a porta de vidro deixando o calor, o trânsito e a preocupação com a hora de voltar, do lado de fora.
- Semana passada, uma ficha me caiu e permaneceu batendo até agora…
Disparou, enquanto já cruzava as pernas em posição de lótus.
- Estou mais atento ao meu sentimento de aprisionamento nesse cú de boi que é a nossa vida, sabe? Me dei conta do quanto estar emaranhado nessa merda toda, é somente mais uma escolha. A escolha mais fácil, mesmo sendo difícil de suportar.
- Hum… Você pode ser um pouco mais claro?
- Digo que é a escolha mais fácil, pois nos eximimos do nosso movimento de expansão. Tô falando do quanto tudo o que me dá prazer, (dentro de um contexto, em que o meu tempo precisa ser dividido entre tantos compromissos afetivos, sociais, profissionais e o escambau), acaba sendo associado a um monte de culpa. Culpa por desejar cultivar um momento único, só meu. Dedicado a uma atividade que me conecte com um meu EU mais genuíno. Por que neste momento — talvez um momento egoísta — os outros compromissos fiquem desassistidos.
- Descobrir como não se sentir mais nessa culpa, é menos importante do que confrontá-la. Quanto mais você colocar energia em descobrir como libertar-se dela, possivelmente, mais tempo vai passar preso a ela. Aproximar-se da culpa, pode funcionar como oportunidade de renegociar esse terreno/tempo perdido (ou cedido), com estes, tantos outros, compromissos assumidos.
- Mas o que eu entendo, é que essa culpa é sem sentido… o problema é descobrir como voltar para esse lugar, que eu nem sei mais se ainda me comporta…
- Certa vez, ouvi do meu mestre: “Quando você parar de lutar contra a culpa, ela vai parecer parar de lutar contra você.” Minha eterna gratidão a ele, por isso.
- Alcançar este estado de consciência de si, significa romper a inércia quando, um mundo inteiro de espelhos nos reflete o ser inanimado em que nos transformamos. Expandindo essa consciência, o caminho se apresenta, e inclusive, talvez até um outro para a desculpabilização.
- Bem, desacelera um pouco agora. Ainda temos alguns minutos. Respire…
Saído do exílio
Abaixo a censura e a ditadura…
A partir de hoje, nenhum sentimento
será castigado!
As palavras do passado, apenas formam
uma história mal contada.
Uma sombra na lembrança
da minha tristeza ressacada.
Que já não afoga ninguém,
que já não mete medo,
nem nada.(Alieksandr Míchkin — 30.07.2006)
Quando deu por si, já passava das 21h. Arrumou os papeis apressadamente. Não conseguia colocá-los em ordem cronológica.
Bateu a porta e girou a chave duas vezes. Ainda estava dividido.
Ok! Conseguiu romper a inércia e voltou à casa antiga. Mas não tinha como mudar-se para lá. Haviam também outros lares… Nenhum deles menos importante. Muito pelo contrário.
Teria que contentar-se em usar aquele espaço como refúgio. Um ambiente para seus (re)encontros clandestinos consigo mesmo. Com suas memórias ingênuas. Com os seus medos amordaçados.
Sabia-se certo, mas sentia-se errado. Num enorme desconforto com aquela mudança de atitude. O que já era um bom indício. Estava entrando numa outra zona.