“Os Lusíadas” Comentado— Canto I, estâncias 1ª e 2ª
Advertência: Tudo o que primeiro se seguir às estâncias em todo este comentário será uma singela versão delas e depois o comentário, ou notas. A primeira e a segunda estâncias formam um todo que contém o seguinte:
As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar engenho e arte.
“Se o engenho e arte me ajudarem a tanto (1), cantando espalharei (2) por toda a parte as armas e os Varões (3) assinalados, que desde a ocidental praia lusitana (4), por mares nunca navegados antes (5), passaram ainda além da Taprobana (6) e que, esforçados em perigos e guerras, mais do que prometia a força humana (7), edificaram entre gente remota um novo Reino (8) que tanto sublimaram (9); e também cantarei as gloriosas memórias (10) daqueles Reis (11) que foram dilatando a Fé e o Império pela África e Ásia (12) enquanto andaram devastando as suas viciosas terras (13) e aqueles heróis (14), que por valentes ações, se vão libertando da lei da morte, e do olvido (15).”
(1) O Poeta nas suas Rimas, soneto 12: Que co’ o desejo meu se iguale a arte. — Bernardo Tasso, Amori, liv. 1, soneto 5º: Et al nobil ingegno adjunta l’arte. Veja-se na Estância 5º mais a este respeito. Assim nos mostra o poeta que conhece ser necessário para uma perfeita poesia juntar-se a arte com o engenho: e ainda para todas as letras, porque, na verdade, engenho sem estudo, e estudo sem engenho, luzem mui pouco.
(2) Aqui se descobre como estas formam somente um proêmio deste poema: estando a proposição na seguinte, dizendo “Que eu canto […]”, nem mais, nem menos como Virgílio: Ille ego, […] cano. E assim veio a dizer “eu canto isto e depois cantarei o mais”, fazendo industriosamente que os ouvidos estejam atentos para o essencial que diz cantar, apontando as digressões que diz cantará. É claro por duas razões: uma, porque o poeta não havia de propor duas vezes: e assim a proposição há de ser aquela que singularmente se canta neste poema, e essa é “eu canto o peito ilustre Lusitano” e qual seja este peito ilustre veremos logo aí abaixo. Outro, porque imitando o poeta em tudo Virgílio, ele pôs contígua a invocação à proposição, e, assim, sendo a invocação na estância 4ª (“E vós, Tágides minhas […]”) providamente deixou na 3ª a verdadeira proposição, que é somente a do herói. Encoste agora o curioso a estas indubitáveis razões as outras que temos dito e que daremos, e ficará tranquilo neste escrúpulo que até agora tão cegamente o preocupou.
(3) Tanto que o poeta começa a deitar o contraponto do seu divino poema (assim lhe devemos chamar) logo os críticos saem a querer tapar-lhe a boca, notando que não começa bem, porque deveria dizer: As armas e o Varão. E que deste modo mostrou não se ter lembrado, ou tido notícia de que o poema consta de uma ação e de um herói, que por ela se constitua novas honras; de que Homero e Virgílio deixaram vivas e patentes normas. Eles acusam-no de que ignorou isto e nós os acusamos de que não o entendem. Não pareça que o nosso rigor é demasiado porque logo se verá que não o é. Homero é distinto e o primeiro da poesia heroica; e nos seus dois poemas envolve a invocação e a proposição por tal forma que não se podem diferençar uma da outra à primeira vista. Virgílio distingue-se: e os que lhe sucederiam, como Lucano, Estácio, Claudiano e outros, não são pouco diferentes a isso desses dois mestres, grego e latino. É necessário variar e que com essa variedade se consiga o maior acerto possível. Isso aconteceu a esses ilustres autores, e mais felizmente a nosso poeta, que afinal imitando-os a todos, sempre se coloca ora ao lado de Homero, ora de Virgílio, sem ter incorrido na precisão de estudo para ser entendido ou apenas de alguma defesa para se salvar, como sucedeu a alguns, e principalmente a dois grandes, que nem por isso deixaram de o ser em todos os tempos. O primeiro é Dante, divino em espírito poético, doutíssimo em muitas letras e constante imitador de Virgílio; e os seus quebram a cabeça acerca de averiguar onde começam duas principais coisas de três com que deve começar um poema: proposição e invocação, que ou se podem confundir, como fez Homero, ou estremar como se vê em Virgílio; sem que haja perigo de errar em que se proponha primeiro o que se invocar ou que se invoque primeiramente o que se propõe. A outra é a narração que deve seguir-se logo às duas, se com efeito entre aquelas e esta não se introduzir o captar a benevolência de algum príncipe, como fez Virgílio na Geórgica, dirigindo-se a Augusto; Lucano na sua Farsália a Nero; Ariosto no seu Orlando ao cardeal de Ferrara; o nosso poeta aqui a El-Rei D. Sebastião; Torquato Tasso em seu Jerusalém Libertada ao Duque Afonso; e em Jerusalém Conquistada ao sobrinho de Clemente Oitavo — a invocação está patente em Dante à entrada do canto 2º, que é mui tarde; e a proposição, quando mui cedo, a encontram os seus expositores no fim do canto 1º; e a narração duvidam eles, se começa no princípio do 2º, crendo que é no do 3º ainda que eu, com outros votos, persuado-me que a proposição e narração não saem dos primeiros nove versos do canto 1º, sucede a isto o inconveniente de que começa a narrar sem ter invocado, pois a invocação aparece no 2º. O segundo autor grande que dissemos carecer de defesa, ou estudo, é Ariosto, porque sendo o seu assunto Orlando, é isso o que ele propõe em último lugar; e o que mais é, que nem de Orlando, nem do que propõe primeiro, é a ação principal com que termina o poema, mas de Rugero, que mata Rodomonte, com que fenece, à imitação de Virgílio com Enéas matando a Turno. E a isso não achamos nunca outra razão, senão que Ariosto não deu o seu poema por concluído ali, e devia determinar fenecer no segundo tomo com outra alguma ação de Orlando; e que para isso tinha começado aquele de que existem cinco livros, ou cantos; e, porque este último era mui trabalhoso, o nosso poeta imitou só em propor primeiramente as digressões e adornos e depois o herói singular. Mas, seja como for, estes dois homens são insignes, não obstante essa confusão em que puseram tantos doutos; e desta mostraremos que nos livrou o nosso poeta, que só quis variar, ou em primeiro propor esses adornos, ou em fazer daquelas duas estâncias primeiras um proêmio desta obra, ou tudo junto. Tão grande homem tinha, sem dúvida, autoridade para variar ao menos em coisa semelhante. Nem Virgílio começou com o arma virumque cano […], mas tão somente com os versos antecedentes, que alguns copiadores lhe tem tirado, e outros juízos dizem que não são seus, contra os quais, se ele fosse vivo, não se agastaria pouco; e começam: illego qui quondam gracilis […], artifício dirigido a preparar o silêncio nos ouvintes, para aquele assunto em que, principalmente, queria ser ouvido, que era arma virumque cano […]. Assim, neste poema o nosso Camões fez esta breve entrada ou átrio à manifestação de seu assunto, mostrando-nos nela o que tinha de envolver nele, como se dissesse nas três estâncias: eu cantarei as armas e varões (ou os Varões que com mão armada passaram à Índia), depois do ilustre peito lusitano que ora canto. E isto declara o poeta perfeitamente ao captar a benevolência do rei, dizendo-lhe na estância 12ª que lhe oferece neste poema aquele Gama, que é outro Enéas; como se dissesse: esta obra é qual outra Eneida. E logo na estância 14ª diz: que também não se esquecerá neste poema dos heróis que na Índia obraram grandes feitos de armas. E estes são os primeiros, que encontramos propostos nestas duas primeiras estâncias. Segue-se logo que não os propôs por assunto geral deste poema, pois naquela estância 12ª diz que não se esquecerá deles, que é o mesmo que dizer: entrarão por adorno principal desse cuidado que levo, que é o herói Vasco da Gama e a sua ação deste descobrimento: porque se ali tivesse proposto os outros, como senhores do poema, não podia dizer depois que não se esqueceria deles. E é para advertir que, nomeando e oferecendo no poema a El-Rei o Gama em primeiro lugar do que estes varões (pois ele está na estância 12ª e eles na 14ª), nos deu a entender que o nomeá-los aqui primeiro, que a ele, foi artifício para produzir atenção. Outra intenção pôde ter e é que, como cantava a navegação (imitando a Homero e Virgílio), não quis que lhe ficassem por imitar Orfeu e Apolônio de Rodes nos seus Argonautas, que juntamente propuseram todos os varões, que se embarcaram; e em particular Apolônio, dizendo: priscorum laudes virorum memorabo, que ao pé da letra é aquilo do nosso poeta: as armas e os varões cantarei: e, por felicidade, que atendendo a esta imitação lhes chamou argonautas na estância 18ª; e depois enconstou-se mais a Orfeu (imitado de Valério Flaco nisto): semideum pariterque heroum primus Jason: e assim logo na estância 3ª faz o Gama primeiro e superior, estremando-o, e propondo-o, como maior, em estância à parte, e de maior estilo e furor, qual ela é (como logo mostraremos), e sempre atento em não se apartar de Homero e Virgílio em propor um só herói. E isso de o propor no fim pode fundar-se em lhe parecer melhor tocar primeiro no geral, que no particular; porque primeiro é gênero do que a espécie; pensamentos em que temos vindo a concordar com o [Horácio] Toscanela, acerca desse modo de propor do seu Ariosto. Não quero servir-me de que ali “Armas e Varões” equivale tudo junto a armas, ou homens armados sem que eles sejam uma coisa e as armas outra, como para semelhante propósito explicou Tomás Porecacio, acerca daquele verso da estância 7ª do canto 25º de Ariosto: gram cantita d’huomini […] d’arme. Nem tão pouco me valerei de que o “Varões” pode ali estar usado com a licença poética que é pôr o plural pelo singular (enálage de número); e ainda na mesma Escritura Sagrada se usa não poucas vezes “Dii” por Deus, ao que parece ter atendido o poeta, quando na estância 57ª do canto 10º disse de um capitão, que tinha pelejado com o valor de fortes peitos, exagerando com a cópia do número o valor. Veja-se, somente hei de valer-me do próprio poeta contra os seus adversários, porque ele é, sem dúvida, o mais seguro propugnáculo contra eles: e, todavia, valer-me-ei também desse termo, ou licença, nesta ocasião, se eles se quiserem valer dele na de “Peito ilustre Lusitano”, como veremos na estância 3ª. E, para enfim me acabe de declarar, digo que esta estância e a seguinte não são mais de que um proêmio, ou argumento de tudo o que há de conter o poema, assim do assunto principal, como das digressões, e que o poeta fez isto por imitar Virgílio no seu “Ille ego qui quondam gracili […]” porque se em Virgílio estão estes versos com tal arte, que tirando-se não fazem falta ao poema, começando em “Arma virumque cano […]” com a mesma cláusula estão cá as duas estâncias, porque suprimindo-as, nenhuma falta fazem começando pela terceira “Cessem do sábio grego e do troiano […]”. Finalmente, com a mesma cláusula de proêmio em qualquer livro: ficando o nosso poeta com uma vantagem, e é que fez proêmio do que havia cantado, que não parece tão próprio. E claramente se vê que o poeta teve este pensamento, porque imitando igualmente a proposição de Virgílio nesse proêmio de “Ille ego qui quondam”, a passou a outro lugar, parecendo-lhe mais próprio deste um resumo de todo o poema: e assim na estância 4ª é que lhe pareceu melhor o lembrar que, aquele mesmo que havia cantado a bucólica do Tejo e outras rimas, era o que agora queria, com furor heroico, cantar as armas portuguesas. Veja-se lá porque a imitação está claríssima e mostrando abertamente que com ela fugiu deste lugar para aquele, tendo a outra matéria por mais própria para este. Também se revela que este é o pensamento do poeta, em que esta é o seu costume, porque no canto 10º, introduzindo uma sereia a cantar os heróis portugueses em particular, antes de começar nessa particularidade, a faz executar um proêmio de todo o seu canto, como veremos notado na estância 10ª, e antes, no princípio do canto 3º, preparando-se Gama para contar ao rei de Melinde as coisas de Portugal, faz um proêmio, ao princípio de tudo, o que tem a dizer. Também cremos que deu ocasião ao poeta para escrever estas duas estâncias o que diremos sobre a estância 99ª do canto 5º. Veja-se, porque é grande observação. Entra como Vigílio, “Arma virumque cano”, com a diferença acerca da qual já discursamos: advertindo agora que, quando Camões escreveu, ninguém tinha imitado Virgílio com tanto extremo, como ele o fez, e, portanto, o começar como Virgílio, foi airoso, porém, depois que o nosso poeta o fez, foi sensaboria em quantos o fizeram (perdoe-me o grande Tasso), porque mais parece que arremedaram Camões, do que imitaram Virgílio; e ainda o mesmo Camões, tendo mais por arremedo do que por imitação do próprio Virgílio isto, não o que pôs no princípio do poema, porque esse é a estância 3ª, como provamos, senão no proêmio, ou argumento de todo o poema, pois isso são estas duas estâncias, como temos provado. Veja-se o que contém o nº 14 do Juízo.
(4) Também como Virgílio aí: Troiae qui primus ab oris. Deste modo diz o poeta que partiram do porto de Lisboa, e toma por ele toda a praia, chamando-lhe ocidental, porque dos portos da Europa é ele o que está mais ao ocidente, quase no meio dessa praia.
(5) De que fossem não há notícia, conforme o testemunho de muitos e graves autores: e os que a quiseram persuadir serão inutilmente inimigos do valor português, para quem o autor de tudo se serviu de guardar esta glória. Bem sei que alguns dizem que alguns dizem que Nanon Cartaginês navegou por estes mares: muitos mais, e melhores, o negam. Sidônio Apolinário no panegírico ao imperador Majoriano ainda excede de conceder, pois chega a impossibilitar a navegação. Modernamente, Dr. Afonso Carrança no seu discurso de moedas, com suas grandes letras e circunspecção, acomoda-se a que os portugueses são os proprietários deste feito. Dispenso argumentos, não só por isto ser uma coisa certa, como porque não tenho tenção de gastar neste comento o cuidado em outra coisa que não seja o recôndito e o imitado. Enquanto ao mais não farei outra coisa senão indicar, porque de outra maneira nunca chegaríamos ao fim. Este verso, ou sentença, repete-se na estância 28a; no Canto 5º nas estâncias 37ª e 41ª; e no canto 7º nas estâncias 25ª e 30ª.
(6) Oferece a dúvida (é entre duas ilhas), de qual seja a Taprobana; se Ceilão, que está em frente ao Cabo Comorim (como tem muitos autores a quem se encostou nosso poeta na estância 107ª do canto 10º), se Samatra, que está em frente de Malaca, com muita distância de Ceilão com o que fica sendo mais aproposito para a distância a que o poeta quer significar terem chegado os portugueses; e também para o que diz Plínio no livro 6º, capítulo 22, que a terra que está fora do mundo e da natureza; e que daquela posição se vê a China, o que não sucede à de Ceilão. Porém, se Ceilão é a Taprobana, dizendo o poeta que passaram mais para lá, por quanto tinham chegado ali outras gentes, há de entender-se que chegaram à Samatra; e se Samatra é a Taprobana, também assim é, porque ainda passaram mais além desta ilha, pois mais além estão as Malucas. Finalmente, a chegada à Taprobana (ainda que por outra causa) era um feito sublime por ser ali, na opinião dos antigos, o fim do mundo por aquela parte oriental, como cá pelo do ocidente o é o Cabo, por esta razão chamado Finis terrae. De maneira que a posse dos dois extremos do mundo foi concedida aos portugueses, que tendo nascido em um, o foram procurar no outro e, ainda não contentes com isso, avantajando-se a essa glória, passaram mais além, como se dissesse, estabeleceram a sua residência fora do próprio mundo, e não quero já dizer que o poeta é quem o diz, para que semelhante dito não seja suspeitoso, ou desproporcionada hipérbole: Plínio é quem o diz nesse lugar; deste modo: Sed ne Taprobanae quidem quam vis extra Orbem a natura relegata nostris vitiis caret […]; nem somente o disse Plínio, mas também Virgílio, ainda com maior encarecimento: e veja-se o lugar no fim da estância 45ª do canto 2º, que é digno de se ver: e tendo deste modo os portugueses passado mais além, ainda ficaram excedendo o que existe fora dessa natureza, e desse mundo. E, singularmente, quer dizer com isto o poeta que os portugueses excederam os romanos. Veja-se o que diremos ao verso 6º da estância 30ª do canto 6º; e outra explicação ao 4º da estância 73ª do canto 8º. Disseram alguns autores que a Taprobana era a maior ilha que os antigos conheceram, e também isso serve para que a Samatra, porque Ceilão é menor. Contudo, tem-se por averiguado, e o ensina o nosso Barros, que a Taprobana é Ceilão. Está situada no mar Eoo, famosa e muito falada nas histórias e memórias dos humanos. Os seus naturais são de estatura agigantada e viviam muito. Produz esmeraldas; jacintos; pérolas; aljôfar; ouro; e prata. Hércules foi o seu deus e o povo elegia o rei. Também dizem o mesmo da ilha de Samatra. Veja-se Ptolomeu, livro 6º; Plínio nesse lugar, alegado, Barros e Gaspar Barreiros em Orfir.
(7) Assim na estância 62ª do canto 3º, e assim havia de ser, que prova ações que parecem milagrosas, interviessem esforço ou valor mais que humano; pois na verdade o autor destas foi Deus com especial favor, e os portugueses o instrumento, como veremos em muitos lugares deste poema e notas.
(8) Assim veio a disse Tasso, livro 1º, canto 1º, estância 23ª: Fondando in Palestina un novo Regno. O nosso poeta entende aqui na Ásia; África; e América, povoada de diversas nações, estranhas ou remotas em climas e costumes.
(9) De dois modos tornaram mais sublimes esse império, edificado de novo. Primeiro, plantando nele a Igreja Católica, que é o sublime esplendor. Segundo, executando por ele façanhas que poderão gloriar os vencidos, como encontrareis na estância 56ª do canto 7º.
(10) Os feitos ilustres, principalmente militares, sem os quais há pouca nobreza ou glória humana bem fundada: porque comer muito, vestir custosamente e ter grande casa à força daquele não sei que, que ordinariamente se chama fortuna, sem ação que cheire à honra ou ânimo generoso, são venturas que propriamente se devem chamar antípodas da fama gloriosa; que veem a ser infâmia e grande desventura, porque o que era próprio aparato para se formar um nome famoso, o será para maior opróbrio, por esta razão diz o poeta memórias gloriosas: porque também há memórias infames, e assim como daquelas é grande desventura o faltarem, assim também destas é o permanecerem.
(11) Entende o rei Dom João I e Dom Afonso V, principalmente em África; e Dom Manoel e Dom João III na Ásia; porquanto, ainda que o nosso rei Dom Afonso Henriques, e aqueles que lhe sucederam, Dom Sancho I, Dom Afonso II, Dom Sancho II e Dom Afonso III debelaram muitos mouros, não saíram da pátria e o poeta diz que estes andaram por aquelas terras viciosas, porém estes entraram também a ser celebrados no canto 3º, em cumprimento do que se segue: E aqueles que por obras valorosas […].
(12) Não [é] intenção minha mostrar-me aqui grande geógrafo, lançando mão de um pequeno motivo para a ambição de sinais de erudito, como presentemente se usa: Ásia e África são partes do mundo bem notórias, onde os portugueses fizeram tanto quanto constará no poema e suas anotações; e consta das crônicas deste reino, e escritos de todas as nações que escrevem. Veja-se como heroicamente o diz o poeta na estância 14ª do canto 7º. África é a segunda parte do mundo; o nome significa terra sem frio, propriedade sua. Consta de cinco regiões: Mauritânia, em que há os reinos de Fez, Marrocos, Suez, Tremessem e Túnis; Numídia, que contém três: Drá, Todegá, Tofilete, Líbia de que trataremos na estância 128ª do canto 3º; Etiópia, que é vastíssima; [e] Egito, populosa, fértil e temperada. Ásia é a terceira parte e a maior de todas: pelo oriente confina com o oceano; pelo norte com o rio Tanais, que a divide da Europa. Vê-lo na estância 7ª do canto 3º. De África a divide o mar Vermelho e uma linha, que passa do dito mar ao Mediterrâneo, que está notado de preto na carta geográfica de Gaspar Vopélio, à 64 graus de longitude. Os geógrafos antigos cariam na divisão da Ásia. As suas principais regões são o Império Turco, em ambas as Ásias, maior e menor, cuja cabeça é Constantinopla; Pérsia; Índia; e Tartária.
(13) Assim chama à África e Ásia; ou pela fertilidade desta principalmente ou pelos maus costumes de uma e de outra; ou por tudo, e isto é o mais certo. Porém, dizendo o poeta devastando que vale destruindo assolando, se há de entender que destru´ram os vícios naquelas províncias, como se pode ver na primeira nota.
(14) Isto é: E também cantarei aqueles heróis que por valentes ações […].
(15) Esquecimento; falta de memória, de lembrança. Olvido é pouco usado.