Conversa com um amigo perdido

Jota Borgonhoni
Os Náufragos
Published in
4 min readOct 28, 2020

Um amigo me procurou um dia. “Você é psicólogo, acho que consegue me ajudar…”. Quando chegou em casa estava com uma cara péssima de cachorro que caiu do caminhão da mudança. Também havia algo entre constrangimento e incômodo para completar o quadro.

Sentou meio que sem saber se era isso que deveria fazer. Tão logo se acomodou, disse meio que se desculpando:

- Pareço aqueles caras que ficam se lamentando e que caem em um consultório de algum psicólogo maluco — sem ofensas! — e ficam se lamentando da vida quando não têm um mínimo problema real…

Depois dessa introdução, eu sabia que a conversa não seria breve.

Ele já passava dos 30, solteiro por falta de opção, tinha pulado de galho em galho na vida e seguia arrastando como desculpa um histórico familiar com um pai autoritário e uma mãe histérica. Dos dois herdara apenas a postura de quem sabe o que está falando mas não tem a mínima noção do que está fazendo. Sua vida era o típico problema sem solução que se cristaliza com o tempo e a cada dia vai ficando mais difícil de resolvê-lo.

- Eu não sei como é com os outros, mas às vezes eu me pego parado, meio paralisado, olhando pro nada. Parece aquelas cenas de filmes americanos que colocam o ator principal num escritório de merda, segurando um café, enquanto pensa longe na frente da máquina do xerox. Virei tipo um clichê, que ridículo…

Suas falas eram meio angustiadas, nervosas e às pressas.

Eu não sabia muito bem por onde começar. Se ele estava meio incomodado com aquela situação, eu tão pouco estava confortável. Arrisquei ser sincero já de cara. Esse encontro não era nem de longe uma sessão de terapia, melhor não querer bancar o psicólogo.

- Nossa geração tá ferrada! Não é mérito teu se sentir perdido dessa forma, ninguém sabe pra onde ir e nem por onde começar. Entendo essa tua treta, mas não ache que só você passa por isso. Não se esqueça que eu sou formado em Educação Física!

Ele olhou fixo pra mim enquanto eu falava e ao final deu uma risada tímida. Relembramos um pouco a festa de formatura de Educação Física, o quanto a gente ainda era magro e o quanto parecia que tudo ia dar certo quando evidentemente nós dois estávamos só no começo dos nossos naufrágios. Porém, esse assunto fez com que ele falasse e relembrasse a sua própria história. Lembra dos testes vocacionais do colégio? — ele disse — aquilo era uma palhaçada! Passado o primeiro momento, esparramado no sofá, ele ria de si mesmo como eu tantas vezes fiz.

- Sei lá, acho que eu preciso me concentrar em algo menos distante. Meu pai sempre falou em diploma, concurso, estabilidade. A tríade perfeita: diploma, concurso, estabilidade! Eu consigo ouvir a trilha dos Vingadores quando penso nele discursando sobre isso. E cara, como ele repetiu isso! Acho que todo dia ele dava alguma cutucada, comparada, comentário. Me mostrava matérias em revistas e jornais. “Veja filho que interessante…” O velho tinha mil formas de martelar a mesma idéia. Impressionante! Se eu fechar os olhos eu vejo ele meio de lado no sofá me estendendo um folheto qualquer e falando sobre isso, essa imagem é nítida. Que triste, isso é o que eu mais lembro do meu pai…

Com essa deixa, falei um pouco sobre imaginário, sobre essa dificuldade que temos de pensar fora de todas esses cenários que praticamente implantaram na nossa cabeça. Arranhei comentários sobre cultura e como somos cercados por milhares de gatilhos, tanto de consumo quanto de crenças. Enfim, me desdobrei como pude enquanto pedíamos mais cerveja no delivery e ele me cortava eventualmente pra comentar alguma capa de um livro.

Ao final, meio bêbados meio dormindo, ele se levantou. É tarde, né? — ele disse — já te aluguei bastante. Como bom anfitrião cansado, sorri mas não neguei. Na porta, quase saindo, ele diz em forma de resumo:

- Imaginário, é essa palavra né? Você vai precisar me ajudar com isso. Mas deixa comigo, curti aquela idéia de começar com coisas simples e começar a prestar atenção todo dia nos gatilhos.

- Mas agora, se você deixar, eu vou começar a explicar a tal da tríade perfeita do teu pai…

- Por favor, espalhe a palavra do senhor! E me diz, quanto te devo?

- Deve nada, já pagou com as cervejas e a pizza.

- Ok, ok.. Então até a próxima, doutor!

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