Memórias de Mortes Minhas

Francisco Escorsim
Os Náufragos
Published in
5 min readNov 2, 2015
Meu caçula, meu pai e seus pais, e uma árvore

Eu tinha 15 anos, era madrugada de verão, em janeiro. Ainda dormindo escutava as batidas em janelas, paredes e portas da casa de madeira da praia. Era uma de minhas tias anunciando. Lembro bem, muito mesmo, de despertar sem despertar. Eu a escutava, mas me sentia paralisado, como se algo impedisse de ser eu a receber a notícia. Não sei quem levantou, quem abriu a porta, quem escutou primeiro, provavelmente meu pai. Para descobrir que o pai dele tinha falecido havia pouco, em Curitiba.

Lembro da estrada, eu sentado atrás dele, dirigindo, cabeça colada à janela, mirando as estrelas e o silêncio, calado por dentro. Lembro do caixão, das mãos cruzadas do meu avô. Lembro do beijo do meu pai no pai dele, inédito para mim. Lembro de voltar à vida, sem saber como lidar com a morte. Eu tinha 16 anos.

No ano seguinte um colega de classe escalava uma montanha. Um menino que estava junto se desequilibrou e cairia, não fosse o Fabio. No repuxo, foi ele a morrer. Lembro da segunda-feira no colégio. Lembro do psicólogo da escola dando a notícia, a professora de inglês chorando, nós todos estupefatos. Lembro do ônibus, na ida e na volta ao cemitério. Lembro de voltar à vida, tentando, e conseguindo, não pensar sobre a morte.

Um ano depois foi a vez da minha avó materna. Eu já estava na faculdade. Chegando em casa meu pai me contou. Fui com ele buscar meus irmãos na escola e dali para a casa dela. Tias e minha mãe rezavam dentro do quarto. Ela na cama, amparada no colo de meu avô, que só fazia chorar e lhe dar carinho no rosto e cabelos. Lembro do rumor das rezas, do desespero de meu avô, da cena tão bela quanto meu pai beijando seu pai. Lembro da poltrona vazia na sala de ver TV, lembro do meu vô seguindo em frente, menos coronel, mais avô. Lembro de voltar à vida.

Outras tantas mortes se seguiram, avós e tia de minha esposa, primos queridos, pais de amigos, conhecidos etc., nem sei em que ordem, data, essas coisas, mas lembro. Chegou a vez do meu avô materno. Lembro da comoção de minha mãe, lembro do cemitério cheio, lembro de já não achar nada demais na morte, tinha meu filho.

Minha avó paterna resistiu bastante tempo, sofreu com o câncer. Lembro de fazer questão que meu filho visse o caixão. Lembro de passear com ele pelo cemitério, tentando explicar, inútil. Lembro dele comendo pipoca doce, aquela do pacote rosa, dele colocando sorrisos em rostos nublados. Lembro do fim, da hora de ir embora, lembro de não querer pensar na hipótese de meu filho morrer antes de mim. Lembro de ter certeza de que não suportaria.

Poucos anos depois a morte mais próxima. Entre adoecer e morrer, uma quaresma. A morte vem inteira, depois aos poucos. Lembro de termos conseguido levantá-lo da cama, ao menos para ver os netos. Lembro do meu caçula ser o primeiro a dar um abraço, sem estranhar o cheiro da morte, tão assustador para as crianças. Lembro de ouvir o sussurro do meu pai: “obrigado”.

Lembro dos médicos alertando, diversas vezes, “difícil passar dessa noite”, lembro de ter me despedido algumas vezes, lembro dele seguidamente passar daquelas noites. Lembro do absurdo da negativa do plano de saúde, dos trezentos e sei lá quantos mais mil reais, impagáveis, juntados em poucas horas para garantir internamento no Sírio Libanês. Conseguimos, e ele, que a tudo assistia, impotente, conseguiu dizer: “obrigado”.

Lembro de trabalhar no chão da UTI, lembro da picanha em plena UTI no dia do aniversário. Lembro que nunca vi minha mãe tão frágil e tão forte, tão mãe, e ela nem desconfiava. Lembro de Santa Luzia, da novena que tantos fizeram e que se não trouxe a cura o deixou forte suficiente para voltar a Curitiba, onde teve forças para, em meio ao calor insuportável, pedir cerveja, do que rimos, apenas rimos.

Lembro que só o vi chorar uma vez, quando na primeira UTI, mãos dadas comigo e minha mãe, ela lhe perguntou: “você tem medo por que não sabe como ficarão seus filhos, não é?”. Ele ajudava demais, porque ele era assim, porque nós precisávamos demais.

Lembro do telefonema, da mãe acordando assustada às 3h, lembro de não precisar dizer nada, lembro de só abraçá-la. Lembro de beijá-lo, como um dia ele fizera com seu pai. Lembro de enterrá-lo, como se isso fosse possível.

Lembro que quando sepultamos o pai do meu pai a árvore próxima ao túmulo me chamou a atenção, bem frondosa. Sim, essa que aparece atrás do meu caçula, mostrando apenas o tronco forte, sem folhas ou flores. É a vida. Hoje, dia de finados, dia de lembrar e deixar doer a solidão da perda, o céu por aqui esteve tão ou mais cinza que no dia dessa foto.

Não fui ao cemitério, antecipei, como a morte fez com meu pai, indo no sábado, com meus meninos, minha esposa, minha mãe. Chovia, faltavam as flores encomendadas, minha mãe preocupada se seriam colocadas para hoje. Na saída, minha esposa me disse: “quando você se for trarei chocolates”. Rimos, o combinado é eu ir antes. Pelo histórico familiar, é provável.

Lembro que semanas depois da morte do meu pai soube da história de Warren Zevon. Quando descobriu que tinha um câncer incurável decidiu gravar um último disco, The Wind. Ele morreu duas semanas depois de lançá-lo, em 2003. Descobri a história por conta da última música do disco, cujo clipe assisti sem querer. Nela, pede para que os seus se lembrem dele um pouco mais depois que ele se fosse. Não sei por que associei essa música a meu pai, mas sempre que vou ao cemitério a escuto de novo. Gosto de imaginá-lo pedindo algo assim, acho que pede.

Dias atrás minha mãe foi ao cemitério sozinha. Acertou as contas com quem cuida da lápide, floristas etc. Na saída, o rapaz que sempre cuidou de tudo, mesmo não recebendo, veio correndo lhe dar um vaso com duas orquídeas lindas. De presente. É claro que foi meu pai.

“If I leave you it doesn’t mean I love you any less
Keep me in your heart for awhile”

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