O Silêncio do Sábado de Aleluia

Francisco Escorsim
Os Náufragos
Published in
7 min readApr 15, 2017
Os padrecos de muita pose e pouca substância

Se sexta-feira santa é dia de rever A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, o sábado de aleluia agora também ganhou o seu filme: Silêncio, de Martin Scorsese. O ideal seria assistir no cinema porque a imersão na “voz” do filme funciona muito melhor ali e é algo indispensável a quem queira entender o que se passa.

Na verdade, não há silêncio de Deus, apenas surdez do orgulho humano que é destronado e só então consegue escutá-Lo. Durante todo o filme há um contraste nítido entre o tumulto interior dos padrecos orgulhosos com a presença constante e inabalável da Criação presente nos sons perfeitamente distinguíveis da natureza em torno a dialogar e emoldurar o testemunho de fé sólida dos mártires japoneses.

O medo proselitista anda a dizer que o filme é terrível porque exaltaria a negação da Graça de Deus, como diz John Hovart II neste artigo traduzido pela equipe do site do padre Paulo Ricardo, no qual chega ao cúmulo de escrever esta besteira: “A graça de Deus nunca permitiria que uma pessoa negasse a Cristo diante dos homens.” Claro, porque o galo nunca cantou nos Evangelhos…

Refiro-me ao canto do galo porque no filme um galo também aparece cantando 3 vezes no instante exato da negação de Cristo pelo padreco sobrevivente. Qual a diferença da negação de Pedro e a do padreco? Nenhuma. Ambos se jactavam de que jamais fariam o que fizeram e ambos se arrependeram depois.

A soberba é bem evidente, especialmente pelo exagero nas expressões faciais de Rodrigues (interpretado por Andrew Garfield) que ganha unidade simbólica quando olha seu reflexo na água e enxerga o rosto de Cristo. A referência explícita ao erro de Narciso torna desnecessário maiores explicações:

Para alguém tão orgulhoso de imitar Cristo, que fim maior e melhor do que poder viver o martírio da paixão? A ida ao Japão para saber se o padre Ferreira apostatou mesmo teve menos a ver com isso do que com a ocasião para provar que era um cristão fodão que morreria mas não negaria Jesus. Aham, senta lá, Cláudia.

A japonesada, ciente de que o martírio era desejado pelos cristãos, quebra os orgulhosos no meio. Numa inversão demoníaca da paixão de Cristo, os japoneses forçavam os padres não a morrer por amor a Deus e ao próximo, mas a morrer para Deus por suposto amor ao próximo. Enquanto não apostatassem, os demais cristãos - ainda que apostatados - continuariam sofrendo torturas até morrer. Com isso, os padres ficavam sem modelo para imitar: Cristo não viveu algo assim, teria Ele apostatado se, em vez dEle, fossem os apóstolos os torturados e mortos até que Ele renegasse seu Pai? É mais ou menos essa a pergunta que o filme faz e se faz.

Mas não interessa aqui a resposta de manual, doutrinal, a ser dada numa situação dessas. No filme, Rodrigues descobre que sua fé não era tão forte como pensava e desaba, apostatando. Mas é exatamente aí, na sua derrota maior, na sua maior miséria, na sua ida aparentemente voluntária ao Inferno, que Deus vem em socorro.

Voltemos ao princípio do filme.

A referência ao canto do galo é também fundamental porque nos faz dar atenção aos sons da natureza que soam no filme antes de aparecer sua primeira imagem. Mais do que isso, formam uma sinfonia, “gritam” ao espectador. É a criação de Deus cantando, gritando até ser calada abruptamente, com a palavra do título surgindo na tela em trevas: “Silêncio”.

Ou seja, o filme desde o começo deixa claro seu postulado: o silêncio não é ausência, mas uma presença que cala tudo e todos. Só então vem a primeira imagem, em meio ao nevoeiro, sugerindo que é preciso aqui mais ouvir do que ver, com a sinfonia da Criação retornando com força e não parando mais até a cena decisiva da apostasia do padreco Rodrigues. Aí o silêncio se impõs novamente, calando tudo o mais e revelando que sua presença é a do próprio Deus:

“Vá em frente agora. Está tudo bem. Pise em mim. Eu entendo a sua dor. Eu nasci neste mundo para compartilhar a dor dos homens. Eu carrego esta cruz pela sua dor. Sua vida está comigo agora. Pise.”

Estamos aqui no interior de Rodrigues. Somente ele escuta. Há quem ache que não era Cristo falando ali, mas o demônio. Pensar assim seria desconsiderar a própria forma do significado do silêncio no filme que sustenta essas palavras. Rodrigues ali não tinha saída. Qualquer das opções seria errada, “logicamente” pensando. Porque se recusasse a pisar isso não seria um martírio, salvo na aparência, mas a culminação do seu orgulho. E Deus despreza os soberbos, especialmente quando pretendem representá-Lo.

Notei que todos aqueles que julgaram o filme como uma apologia da apostasia recortaram a cena do pisão na foto e julgaram o todo á luz dela, mais nada. Com isso, revelam mais a fragilidade da sua fé para suportar a dúvida, a ambiguidade, do que sobre o filme.

E mesmo assim, mesmo considerando apenas essa cena isolada de todo o resto, é impossível saber o que de fato significou aquele ato de Rodrigues. Porque, por outro lado, e se foi Cristo mesmo falando com ele, não para “concordar” com a apostasia, mas para ser crucificado de novo e com a mesma finalidade: salvar o pecador?

Como o filme não termina ali, sigamos.

Há uma mudança mais do que relevante depois desta cena. Surge um narrador observador contando os anos seguintes de Rodrigues até sua morte. Se ficarmos só com o que o narrador nos conta e também com o que lhe contaram, não teremos dúvida: o ex-padre apostatou e jamais se arrependeu, morrendo budista. Acontece que vemos mais do que esse narrador viu e contou. E aqui se inverte a perspectiva: o que antes era para ser ouvido agora é para ser visto.

O filme não deixa dúvida ao mostrar que no coração de Rodrigues, onde antes reinava Narciso e sua angústia, agora reside um pecador arrependido. Não há como negar isso com a cena em que o Judas do filme - Kichijiro -pede para se confessar com ele pela terceira vez. Não há como o narrador observador saber disso, por isso aqui ele se cala e tal como na cena da apostasia só o espectador vê e escuta. Ficamos somente Rodrigues, Kichijiro e nós.

Repare que Rodrigues disse que não podia ouvir a confissão, não que não queria ouvi-la. Em seguida, vemos ele não apenas começando a rezar - “Senhor, eu lutei contra teu silêncio” - como Deus respondendo - “Eu sofri ao teu lado, nunca estive em silêncio” -, com Rodrigues nos revelando o que realmente se passava em seu coração:

“Eu sei. Mas mesmo que Deus tivesse ficado silente minha vida toda até este dia, tudo o que sei, tudo o que fiz, fala de Deus. Foi no silêncio que ouvi Tua voz”.

Essa cena não deixa margem a dúvida, não é ambígua, o que joga luz ao momento da apostasia. Ou seja, o que foi uma apostasia por fora, foi uma conversão por dentro. Se ainda resta dúvida, é dissolvida quando vemos no fim a esposa de Rodrigues colocando um crucifixo em suas mãos para acompanhá-lo na morte. Por que a esposa faria isso se Rodrigues fosse budista de fato? Ele provavelmente converteu a esposa também e sabe-se lá quantos mais que, tal como os japoneses mártires, viviam escondidos.

O filme, portanto, mostra não apenas a Graça de Deus não nos abandonando nem quando escolhemos o Inferno, mas também alguém arrependido e que sofre até o fim para tentar ser fiel no pouco que consegue e pode ser. Na comédia divina a armação diabólica se torna o instrumento pelo qual Deus destrona um orgulhoso e em sua miséria fala ao seu coração. É o que aconteceu no filme e não só com Rodrigues, mas também com o padre Ferreira. As caras dele demonstravam claramente que estava escondendo algo e quando soltou um “Somente o Nosso Senhor pode julgar seu coração!” para Rodrigues, podemos conjecturar que processo semelhante se passara com ele.

Enfim, é por terminar com o pequeno Cristo pregado na cruz brilhando em meio às chamas da morte de Rodrigues que o filme nos remete de imediato ao sábado de aleluia, o sábado do grande silêncio em que Deus foi ao Inferno libertar as almas. Se silêncio há na terra, no inferno é o contrário, há a voz vibrante e sonora de Cristo a fazer novas todas as coisas. É só quando Rodrigues aceitou ir para o Inferno e abraçou sua miséria que Jesus lhe falou e resgatou.

Quem considera esse filme uma negação da Graça Divina precisaria explicar o significado das cenas posteriores à apostasia, o que, repito, não vi fazerem, como se a história tivesse terminado no instante do pisão. Uma pena, pois ao fazerem assim estão a olhar mais para o exterior destruído e desconsiderando o interior sendo restaurado, acabando por valorizar mais um sepulcro bem caiado do que o que vai por dentro.

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