A praça, o beijo

Leandro Godinho
outras cousas
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3 min readJul 16, 2015
Uma noite na praça

Era noite em São Paulo e os dois não tinham muito tempo, não. Era quase tarde demais. Ele precisava pegar o metrô e chegar numa janta na Liberdade; ela não morava na cidade e precisava correr para pegar o último ônibus rumo a Osasco. Era noite em São Paulo e os dois bebiam na República, dividindo a mesa com uma terceira pessoa, um cidadão embriagado e que, uma vez de pileque, se acreditava grande orador e não cessava de falar. Os dois só queriam sair dali do bar.

Ela havia chegado cedo ao bar, ele tinha se atrasado em meio à cidade saindo do horário comercial. Mas ela o aguardara mesmo assim até quase nove da noite, aceitou até a companhia do falador, aceitou cada desculpa que chegava por mensagem no celular. Aceitou porque o desejo é capaz de sublimar a maior das ideias de jerico da humanidade. Agora ela se resumia a dois olhos abertos de pavor com aquela presença dele tão inábil, ela mirava o rosto atônito do moço — chamava Raul o moço; ela atendia por Amanda — que por sua vez tentava achar um motivo para enxotar o pinguço dali, só que fracassava, dentro de si algo murchava e ele não conseguia.

Meia hora se passou assim, frustrante e tensa.

Amanda não quis mais a espera, ela se levantou da cadeira com um cigarro nas mãos, a desculpa para sair do recinto e ganhar a rua, olhou para Raul e em silêncio ordenou que ele a seguisse. Felizmente Raul leu aquela mulher corretamente, levantou-se e foi atrás dela de imediato. Você não devia ter demorado tanto, porra. Tive que aceitar esse bêbado chato do caralho na mesa. Vamos simplesmente embora daqui que preciso voltar pra Osasco, minha filha tá com minha irmã em casa. Amanda soltava as palavras em meio à fumaça do cigarro e repetiu, olhos nos olhos fixos, fortes, resolutos, lindos, vamos embora daqui agora.

Vamos embora daqui agora.

Os passos, em meio a todos ali que circulavam, fumavam, pediam, começaram devagar mas logo se tornaram inadiáveis, apressados, vamos embora daqui, meu amor, vamos atravessar essa rua, às favas o sinal que não fecha, para o diabo com esse par de ônibus, uma esquina que se dobra, uma praça adiante na vista, luzes ao fundo e mais pessoas dentro das luzes, Raul e Amanda caminharam por minutos brevíssimos que nunca pareciam minutos o bastante. Amanda então agarrou com uma das mãos a mão do moço que fugia com ela para dentro do impossível daquela noite o mais depressa que conseguiam.

Diante da praça eles cessaram de fugir e então só restou mesmo aquele beijo. Ao fechar os olhos e mergulharem um dentro do outro, finalmente, o tempo não teve o direito de passar por eles como se fossem apenas duas pessoas ali em meio à cidade. Quando o par de línguas se enroscou, a praça se esvaziou e a lua cresceu. Havia silêncio. Aquele beijo era uma espécie de pacto, de segredo, de fuga por si só, de impossibilidade que se concretizava para talvez nunca mais.

Os dois percorreram mais um par de esquinas atrás de uma porta onde pudessem entrar, mas nenhum deles sabia para onde ir, não havia portas, ao menos não as havia abertas. Havia a hora, a irmã chamando no celular, a janta na Liberdade, a oportunidade se esvaindo pela calçada feito chope derramado. Ela disse, ao se despedir, você vai me dever essa noite pra sempre.

Ele havia percebido isso no momento exato em que teve a impressão de que se soltaram daquele beijo. Era outro o homem que parecia ser agora. Amanda condenara aquele que ele havia sido até então a ficar o resto da vida ali na praça, entre seus lábios.

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