Amanda em Roma

Leandro Godinho
outras cousas
Published in
7 min readJul 19, 2021
Aeronaves da Alitalia

O desembarque em Fiumicino já parecia uma lembrança tão distante e no entanto ainda estávamos caminhando rumo à alfândega para validar nossos passaportes. Amanda caminhava tendo diante de si enormes e negros óculos Gucci com detalhes dourados nas hastes. Era a minha primeira vez viajando a trabalho e eu tentava parecer um homem adulto de vinte e seis anos ao lado daquela executiva de quarenta e tantos que, pouco antes da fila do visto de entrada, parou, me segurou pelo braço e disse veja, meu rapaz, a empresa vai levar pelo menos uns três meses para assinar esse contrato. Se assinar. Nosso papel aqui é parecermos profissionais e não desesperados por uma barganha. Então ela tirou os óculos do rosto e enquanto limpava uma das lentes na barra da minha camisa, concluiu: confie em mim, quando a gente voltar para Porto Alegre, o Paulo vai saber o quanto você vale.

O Paulo em questão era Paulo Nogueira, o sócio majoritário da empresa. Até ali, para mim, ele sempre havia sido o Senhor Nogueira, bem assim, por extenso. Amanda, ou Doutora Amanda, e em certas ocasiões, Senhora Amanda Del Negri, era uma da sócias minoritárias. Estamos em Roma há quatro dias com a finalidade de fechar as bases de um contrato com uma firma de tecnologia de dados chinesa — Amanda irá falar em nome da nossa companhia e eu tenho a missão de fornecer todo o tipo de suporte para ela.

De batom carmim, tailleur branco e sempre me chamando pelo meu sobrenome durante essas negociações, Amanda se impõe aos argumentos e questões levantadas pela tríade de negociadores que se encontra sempre conectada via satélite com Pequim e Xangai numa sala de reuniões do mesmo hotel onde estamos hospedados. Será que ela sabe que é delicioso vê-la colocar esses mandarins cheios da nota em seus devidos lugares, a repetir para ela of course, madam ou excuse me, mistress? Eu torço para que saiba.

Eu mal havia completado um mês trabalhando na Nogueira & Associados Soluções em Telecomunicações quando o Robério, o veterano da TI, me convidou para almoçar. Mas nesse restaurante mixiruca aqui do shopping, não, hoje tu vem comigo no Espetão e a gente coloca na conta da firma. O almoço durou umas três horas. Depois de quase finda a primeira delas, Robério pediu o primeiro de vários chopes. Eu resolvi acompanhar. Pouco depois de assinar a fatura com a conta, Robério me contou que daquele almoço em diante eu poderia me considerar efetivamente contratado da Nogueira Soluções, e que ele estaria a meu dispor sempre que eu precisasse — mas o ideal mesmo, guri, é que não precises quase nunca, concordamos? Já estávamos diante da calçada do prédio onde ocupávamos os dois últimos andares com ampla vista para a Praça da Encol quando Robério parou de caminhar e pareceu se recompor daquele longo almoço com um grande estalo no pescoço, outro nos dedos das mãos, e por fim me disse, bastante grave: essa firma é um ninho de cobra. Toma muito cuidado com a Doutora Amanda, hein. Muito.

O que eu sabia de Amanda até ali era que estava sempre viajando, que ela era uma das outras três pessoas que mandavam naquele lugar além do Nogueira e que um plano de investimentos em uma pequena firma de bitcoins idealizado e coordenado por ela havia rendido tanta grana que se dizia que os sócios só mantinham a empresa funcionando para lavar o dinheiro da operação. Fora isso, sabia das histórias. A melhor delas: Amanda era a verdadeira dona do negócio e o Nogueira não passava de um ex-marido rebaixado a testa-de-ferro desde quando havia sido flagrado no estacionamento do prédio aos beijos com o Aranha, outro dos sócios. Um par de vezes cheguei a ver a doutora (ela exigia o tratamento porque tinha doutorado em engenharia, me contou um dos caras do financeiro na minha primeira semana) saindo do prédio enquanto eu voltava da rua, sempre acompanhada de algum dos sócios. Amanda é uma mulher que silencia um ambiente quando aparece, mesmo que o ambiente seja a Avenida Nilópolis.

Duas semanas depois do almoço com Robério, enquanto dividíamos o primeiro cigarro do dia, a Aninha, do setor de pessoal, perguntou se eu havia chegado a conhecer o Tomás. Não, eu não conheci. Era um guri tão massa. Uma pena. Aconteceu alguma coisa com ele, eu quis saber. Aconteceu a Doutora Amanda. Quero dizer, eu não sei de nada, não vi nada, mas foi o que me contaram. E o que contaram? Nem queira saber, Leandro. Porra, Aninha, fofoca pela metade? Vou entregar pro seu Nogueira que você usa o roteador da sala do RH pra baixar seriado de vampiro. Olha, Lê, só vou dizer isso: aquela mulher não presta. E apagou o cigarro na sola do sapato, se afastando.

Quando voltei à minha baia, o Jotapê e o Grilo, outros dois caras da TI, fingiam tão mal que checavam seus emails enquanto eu puxava a minha cadeira que hesitei em sentar. Então vi o post-it colado bem no meio da tela do meu monitor com o recado LIGAR DRA AMANDA URGENTE RAMAL 6720. Liguei. A voz do outro lado perguntou se era o Leandro. Sim, sou eu. Corre aqui no sétimo, sala 7009, pode entrar direto que a doutora está te aguardando. Aposto cem pila contigo que esse aí se demite semana que vem, ouvi o Grilo dizer para o Jotapê enquanto eu enfiava duas pastilhas de hortelã dentro da boca.

Amanda estava ocupada com a leitura de papeis e não tirou os olhos deles quando falou comigo. O senhor é o famoso Leandro da nossa mui valorosa TI? Os cabelos eram repuxados num coque digno de samurais. Eu mesmo, doutora. As sobrancelhas pareciam desenhadas por robôs japoneses programados por engenheiras alemãs. Então o senhor vai conseguir configurar o wifi dessa porcaria de tablet que me venderam semana passada em Santiago, imagino. Uma das mãos apontou o dispositivo numa das quinas da mesa que ela ocupava e as unhas nessas mãos valiam mais que meu Gol prata financiado em 36 prestações. Sem problema, doutora. Eu estava terminando de configurar a rede quando vi que ela havia baixado os papeis que lia para me observar trabalhando. O senhor pode sorrir quando estiver comigo, sabia? Ela me desarmou e sorri feito uma criança de três anos pega fazendo xixi nas calças. Então ela parou de sorrir.

Senta aí e me escuta, guri, ela disse. Escutei, é claro. Daqui a três semanas nós vamos a Roma. Teu passaporte está em dia? Ela me contou sobre a tal firma chinesa, a nova tecnologia de análise, recuperação e armazenagem de dados com criptografia, um pulo do gato que nossa concorrência ainda ignorava. Eu não conseguia deixar de pensar no Robério, na Aninha e no fato de que eu respondia a pelo menos outros dois superiores dentro da TI da empresa. Eu quero muito que você, e ninguém mais, viaje comigo até Roma daqui a três semanas, Leandro. Você quer aproveitar essa oportunidade?

O caminho até o hotel se deu como se aquela fosse mais uma viagem a negócios. Mas então o elevador nos deixou no décimo quarto andar, onde Amanda teria uma suíte executiva e eu um quarto próximo aos elevadores. A voz não pareceu vir dela, só que veio. Eu pedi uma semana em Roma com você porque é uma semana em Roma com você, entende?

O que os chineses de Pequim, Xangai e Roma não sabem: quando não estamos mais diante das obrigações contratuais, Amanda se despe daquele batom carmim, do tailleur branco e me chama de meu bem enquanto caminhamos de mãos dadas à procura de bares que sirvam Dirty Martinis e drinques com cerejas. Sou levado à tiracolo daquela mulher que me faz atravessar as ruas feito um Jep Gambardella de brinquedo, acender seu isqueiro como se eu possuísse mãos e dedos de Mastroianni, ou me vestir e despir de ternos como se em meu corpo habitasse Andrea Pirlo.

Eu não penso em oportunidades quando Amanda se despe para mim. Eu sequer penso em Roma, nas vitrines chiques de Esquilino, nos turistas pedalando pela Via Ápia, nas carradas de negronis, mimosas e variações de apperol. Eu não penso que tudo isso parece um sonho, que mal vi a cidade durante o dia porque passamos as manhãs e as tardes negociando com os orientais, ou no meu pai a chorar vendo os filmes de Fellini em gastos VHS e que jamais poderia imaginar onde o primogênito dele está agora. A carne de Amanda limpa de mim qualquer espécie de pensamento que não fosse procurar aquela felicidade que reside dentro dela.

Por que eu não me dei conta antes de abrir a boca que mencionar a volta a Porto Alegre daqui a mais dois dias fosse engasgar o mecanismo do nosso particular carrossel? O que tem Porto Alegre, Leandro? A gente vai se ver lá, né. Creio que sim, trabalhamos no mesmo lugar. Sim, mas e nós? O que tem nós, Leandro? Eu não respondo mais porque entendo que não existirá nós em Porto Alegre. Robério e Aninha bem que tentaram me avisar.

Um dia, eu sei, pensar em Roma será pensar nessa impossível Amanda. Depois de Roma, e talvez já quando o avião da volta estiver taxiando para decolar e a tripulação de bordo nos avisar que aquela aeronave é dotada de oito saídas de emergência, para observarmos a indicação das comissárias e identificar a saída mais próxima de nosso assento, não sei se serei capaz de desejar Amanda com essa mesma alegria. Não sei também se Amanda pretende frequentar o meu modesto quarto e sala com vista para a Osvaldo, ou se vai querer me encontrar para a saideira no Van Gogh. Só sei que ela nunca quis.

Amanda, no entanto, não pensa em aviões, quarto e salas ou bares vagabundos. Ainda estamos aqui, meu bem, ela ronrona. Por que você não faz como os melhores professores de latim e aproveita o dia? Ela me aperta de paixão e me beija como se eu fosse sufocar. Eu mergulho no impossível e uma parte de mim torce para que o clichê da cidade eterna me abrace, mesmo que seja por um tempo ridículo de pequeno e que o abraço se desfaça antes que eu abra os olhos de novo.

--

--