Só falta você me dizer que não sabe que essa é a capa do “amorica.”, dos Black Crowes

amorica.

Leandro Godinho
outras cousas
Published in
4 min readJul 18, 2016

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Prendi a fumaça e fiquei olhando pro cigarro em minha mão direita, a erva atochada dentro da seda era macia como as bochechas de um recém-nascido. Fechei os olhos e dentro de poucos segundos meus pensamentos todos sorriam, alguns corriam por um vasto descampado em câmera lenta como se nem pensamentos fossem, mas garotos jogando bola na praia, então iam longe e gritavam uns com os outros na alegria de estar sob o sol e sobre a areia. Outros deles eu encontrei reproduzidos na tela do aparelho de televisão desligado a palmos de mim, com os olhos miúdos a encarar a vista da janela que dava para a madrugada a meu lado: era Nina em quem eu pensava ao mesmo tempo em que não pensava em nada, mas ainda assim ela sorria e até se desnudava sem pressa, para ver no meu rosto e nos meus atos aquela impaciência de quem muito quer. Ao meu lado, ela continuava olhando para a cidade que se mostrava da janela da sala de seu apartamento sem dizer palavra, a cabeça recostada no próprio vidro e o bafo da respiração embaçando o vidro.

Soltei a fumaça lentamente para ver a fumaça fugir de mim sem pressa, como Nina gostava de fazer quando me beijava na boca. Ela se demorava e gostava desse tempo em suspenso, o tempo entre nossos corpos naquele espaço criado entre nossos lábios que ia de uma goela a outra, regulado por línguas e dentes e a saliva que se perdia entre nós. Para dar o segundo tapa, recostei minhas costas no encosto do sofá e a cabeça na parede que havia atrás, olhos fechados e uma looonga tragada. Acho que Nina me olhava rindo sentada ao meu lado quando viu a maconha me pegar — o que sei é que ela acendeu um cigarro regulado pelo Estado, nicotina & alcatrão, ela fazia isso para rebater a onda da maconha, ou talvez porque adorasse fumar. Me ofereceu um cigarro que aceitei.

Ela então ligou a televisão e colocou num volume baixo porque uma colega com quem dividia aquele apartamento dormia na mesma sala, sobre um magro colchonete mas enrolada num cobertor desses que esquenta só de você olhar sua espessura. Nina ligou a televisão porque aquele silêncio já começava a fazer escândalo e a sala do seu apartamento ficava a metros do seu quarto, onde havia a sua cama, onde ela podia, se quisesse, me deitar a um chamado, e seria bem fácil me chamar pois ela poderia se levantar do sofá e caminhar em direção ao quarto e ao passar por mim, acariciar minha cabeça, puxar minha mão, apagar a luz da sala. Na tela apareceu uma banda tocando uma dessas baladinhas que a gente gravava pras namoradas antes da música digital em fitas cassete. Quando eu gravava as fitas, eu ia além e escrevia bilhetes, poemas, trocadilhos — eu já era absolutamente inseguro bem antes de ser modinha.

Monalisa ganhou umas duas ou três delas, uma morena que praticava natação no mesmo clube onde eu jogava basquete e depois ficava até de noite pra esperar ela sair do banho cheirando a cloro e Neutrox. Ela sabia disso e ficávamos conversando ali perto da piscina enquanto os nossos pais estavam reunidos com os professores do clube, ela gostava que eu esperasse por ela e sempre esperasse por ela com aqueles meus olhos que gostavam tanto de vê-la. Aquela verborragia condensada em canções de amor e poemas ruins nunca se mostrava nessas noites, a gente conversava sobre o nada e se algum dia ela quis de verdade que aquelas metáforas ganhassem voz e rosto, eu jamais tive a coragem. Morria de medo. Um belo dia acabaram as reuniões dos pais após os treinos e eu passei a ir embora assim que meu irmão caçula saía da piscina porque ele tomava seu banho em casa mesmo.

Eu continuava o mesmo garoto vinte anos depois, diante de outra mulher, mesmo que essa outra não tivesse dúvidas a respeito de mim. Nina se levantou do sofá e pegou dentro da cozinha um cinzeiro. Na volta, parada na porta da cozinha comentou que lembrava da banda da televisão. “É aquela que você gosta, não é?”. Era. “Eu lembro dessa música. Uma vez tocou na sua casa e você ficou parado de pé, no meio do corredor, de olhos fechados um tempão. Eu tenho uma foto disso que fiz com o celular e guardei.” Eu ainda faço isso de vez em quando, verdade.

Ela enrolou outro baseado e no meio desse processo do novo baseado disse que a gente fumava mais aquele e eu ia pra casa, afinal eram quase quatro da manhã. Eram quase quatro da manhã e ambos trabalhávamos no dia seguinte. Eram quase quatro da manhã e havíamos passado a noite bebendo e conversando até o limite de querermos não mais beber e apenas nos abraçar e se nos abraçássemos ali, entre as paredes do apartamento e o som baixinho da televisão, não seriam mais quatro da manhã tão cedo. Eu disse que sim, claro, está bem tarde mas vamos fumar mais esse, sim, que essa maconha é sensacional, e ela riu, porque a maconha era sensacional tal e qual os olhos dela quando a gente ria.

Nina então desligou a televisão e mexeu no celular assim que acendeu o baseado. Logo começou a tocar novamente a baladinha. Ela soltou os cabelos e sorriu com mistério e verdade. Eu fiquei olhando pra ela e senti o pau inflar de desejo, mas continuei calado.

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