Aquele mês de fevereiro

Leandro Godinho
outras cousas
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4 min readFeb 25, 2015

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No início, éramos dois. Um chegou vindo pelo ar de Porto Alegre e o segundo veio pela terra, de Belo Horizonte. A cidade já vivia o período de festas carnavalescas a pleno vapor e, tanto para um quanto para o outro, chegar ao Rio de Janeiro exigiu certa dose de paciência e algum bom humor. Mas, que diabos, era fevereiro, era carnaval e nós éramos amigos. Ao cabo, ambos logramos sucesso em chegar ao apartamento que seria a nossa base na cidade para dormir, tomar banho e lá deixar nossas bagagens — um amigo do cabra de Porto Alegre cedeu sua moradia uma vez que não estaria na cidade durante a folia.

Logo pela manhã de sábado, nos tornamos três com a soma de um residente do Rio de Janeiro que morava próximo do nosso apartamento-base e conhecia o viajante de Porto Alegre, aliás, eu mesmo, desde os tempos de faculdade. A vida sorria para nós diante do metrô funcionando 24h na cidade, um oásis de cidadania.

Quem não chora, não mama

Com o primeiro bloco já deslizando em suingue e serpentina pelo centro da cidade, encontramo-nos todos envoltos no carnaval. Que saudades daquilo tudo. Ali pela Gomes Freire encontramos um quarto elemento que se somou a nós fantasiado de planta trepadeira e sua respectiva garota, ambos à beira da embriaguez ideal e então foi decidido pararmos todos no próximo bar, que se encontrava bem próximo, no virar da esquina e pedirmos uma dose de cachaça cada. Ai. Pedimos duas. E saímos dali do bar leves e flanando, a multidão fantasiada nos servindo de moldura e oxigênio.

E aquele, minha gente, era somente o primeiro bloco, a primeira hora do carnaval, quando meu par de All Stars ainda não havia sido moído entre minha obesidade e o concreto e as pedras portuguesas das calçadas, tantas calçadas — na Lapa, na Praça Tiradentes, na Praça Quinze, na Carioca, na Cinelândia, no Aterro, na Praça São Salvador, na Rua das Laranjeiras, no Grajaú e na Saens Peña. Ali pela terça-feira de tarde a ideia de viver debaixo de um chapéu de pirata, caminhando a esmo pelas ruas da cidade atrás de gente fazendo festa com batuque e movidos a latinhas mornas de Antárctica já havia ultrapassado a condição de utopia. Eu ainda não fazia ideia das assaduras que tomariam conta das minhas coxas, me fazendo caminhar ao final dos dias, madrugada adentro, de modos criativos para driblar a dor.

Mas não foi apenas de cerveja e dor que se alimentou o carnaval; havia, sobretudo, gente. E uma gente muito, mas muito maneira que como nós estava mais disposta a sorrir do que qualquer outra coisa, recheando o espírito da festa que tomava as ruas e esquinas.

Rapunzel de verdade

Essa gente que vinha de todo lugar, dos subúrbios, das praias, das montanhas e até da Turquia, essa gente vinha para a cidade em busca de algo que ninguém era realmente capaz de explicar, mas que no final acabaria encontrando, mesmo que tropeçando por acaso no alvo, no objetivo de vida, na cidade dantes sonhada, na viagem, no amor ou na maior trepada possível. É muito difícil não se apaixonar pelo Rio de janeiro e seu povo durante esses dias movidos a loucura plena, cordões de pessoas a pé pelo centro da cidade que se despe dos carros e ônibus, dos engarrafamentos, das buzinas e das seis da tarde para ser navegada pelo Cacique de Ramos, por grupos de mascarados bate-bolas e por gente usando um chapéu de pirata comprado há dois carnavais passados.

Esse é o grande lance dessa festa tão coletiva: nós.

Aprende, Cartier-Bresson.

Ao lado dos grandes blocos da cidade, alguns tão tradicionais quanto a festa, houve espaço para cordões a favor das mulheres rodarem suas saias e liberdades, houve gente fantasiada de frentistas bilionários, houve a água que está faltando, houve os sete gols enfiados em nossa meta pelos alemães em várias formas — porque no carnaval existe esse nosso desejo de vingar as pequenas e algumas não tão pequenas desgraças que a vida com horário marcado e corrido, grana curta e paisagens cinzas nos entrega sem que peçamos. A vida é foda. Só que o carnaval é mais que apenas foda, o carnaval tem o talento de atingir picos de alegria onde a nossa vida se torna de fato válida, e o dia seguinte realmente necessário e relevante, e daí sorrimos, mesmo quando no meio da muvuca te somem o celular e a carteira, conforme se deu com o amigo de Belo Horizonte.

A vida vale mais a pena quando acordamos com o corpo cheio de dores, mas também repleto de música e sorrisos. Sorrindo se vai mais longe, se conhece mais gente, mais gente que vale a pena conhecer para dividir a vida e algum sorriso. Após fevereiro, o que me restará é apenas uma longa espera. Contarei as horas tão certas, tão marcadas, tão inúteis.

Tão inúteis.

Tchau.

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