Berlin
Quando o telefone voltou a tocar eu pensava no Portão de Brandemburgo. Os arcos e os guerreiros sobre cavalos, os escudos, aquela glória do povo germânico. Em Manu olhando para aquilo tudo e sorrindo, sob o sol da primavera. Manu sorrindo de óculos escuros grandiosos, dignos da saudade que ela havia deixado em Cachoeirinha, aos meus cuidados. Eu tratara de imprimir em papel couché fosco e emoldurar seus despojos, um retrato, um auto-retrato na verdade, que ela tinha feito de si própria catorze dias antes de embarcar naquele ônibus para Porto Alegre onde iria resolver alguns assuntos na faculdade de letras a respeito da bolsa de intercâmbio. Manu de chapéu, sardas, os incisivos superiores frontais levemente acentuados e seus olhos castanhos tão propriamente vivos — aquela fotografia que eu havia pendurado numa das paredes da sala e para a qual eu me perdia olhando todas as manhãs, enquanto queimava o primeiro cigarro do dia, sentado na poltrona que ela havia deixado no apartamento (herança de sua avó materna).
O telefone continuava tocando e atendi, subitamente desperto de mim mesmo. Julinha, a estagiária que trabalhava na mesa de frente para a minha já me olhava com algum temor, pois que seu chefe parecia não ser equilibrado e a terceira pessoa daquela diminuta redação de jornal só chegaria no recinto em duas horas. A menina devia rezar para que minha loucura fosse daquelas de anedotas de escritório, não das que ganhariam páginas de jornal — quanta ironia, caras. Não era loucura, não, Julinha, era saudade, mas você é muito nova para essas coisas dramáticas e pro alcoolismo, pro tabagismo de resultados, pra insônia, pra mentir pro seu analista mesmo não ganhando tão bem assim a ponto de se dar ao luxo de bancar um profissional que cobrava caro. Eu atendi o telefone; era engano. A pessoa do outro lado da linha insistia que eu é que estava enganado, ela tinha discado o número correto. Me chamou, veja só, de paspalho. Desligou na minha cara.
Manu me deu um beijo longo na plataforma da estação de Cachoeirinha como uma despedida antes de entrar no ônibus de turismo para a capital. Os dois fingíamos que não era uma despedida, mas um até breve. Um ano passa rápido. Eu vou voltar para as festas do final de ano. A gente vai se falar sempre pelo Skype. Vai ser bom para a gente essa individualidade. Tudo mentira mas a gente se amava e quem ama mente mesmo, mente porque a verdade é uma grande merda. Tal e qual meu Woody Allen pessoal se despedindo de Mariel Hemingway em preto e branco, eu quis pedir que ela ficasse. Por descuido ou poesia, fica. Cachoeirinha não era Nova Iorque, eu não era Chico Buarque e a passagem estava paga pelo programa de intercâmbio, se Manu desse na telha de não embarcar teria que reembolsar os alemães. A gente iria à bancarrota e teríamos discussões mesquinhas por conta da insensatez do calote. Ela brigaria comigo e seria um rompimento horrível, coisas quebradas no chão da sala, ofensas vis. Manu me olhou após o beijo já outra moça, não a namorada que tinha ido morar comigo para sair de casa e economizar aluguel simultaneamente, mas aquela menina que eu namorei dois anos e a gente até dividiu apartamento mas aí ela conseguiu uma bolsa em Berlim e foi embora. Ela foi embora.
Eu fiquei ali na plataforma vendo o ônibus ganhar a avenida rumo a Porto Alegre e então parou outro carro na vaga, desceram outras pessoas. O celular tocou e era Julinha perguntando se eu iria trabalhar naquele dia. Teu chefe lá em Canoas já te ligou quatro vezes hoje, Leandro, chega logo que ele fala muito palavrão e eu não gosto de ficar ouvindo tudo. Claro, Julinha, eu já ligo pra ele, deixa comigo, em dez minutos estou aí. Ah, Leandro, aproveita que tu já tá no caminho e me traz uma aspirina? Levo, Julinha.
Na farmácia perguntei se havia estricnina também, mas felizmente a moça do caixa era evangélica e só fez o sinal da cruz, me consolando. Calma, moço, leva só a aspirina e vai num médico. Eu ri. Ela não entendeu nada, coitada.