Chope (2024)

Leandro Godinho
outras cousas
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7 min readApr 28, 2024

Casal sentado numa mesa de bar, final de tarde, bar não muito cheio, apesar de já barulhento. Ela puxa um cigarro da bolsa.

… então agora você fuma?
fumo. desde que conheci o arnaldo, ele fumava muito, acabei indo atrás.
ô, amigo. dois chopes, o meu escuro faz favor, querido. e um cinzeiro.
tem problema fumar aqui, moço?
(não, dona, pode fumar, já trago o cinzeiro.)
engraçado que você detestava fumaça de cigarro, comprava até umas brigas.
sim… porra, o tavinho morto. sabia que eu fiquei com ele? foi o primeiro cara que beijei na faculdade.
acho que lembro disso, foi uma festa no centro acadêmico?
não, antes dessa, teve uma chopada, acho, lembro tinha muita maconha, muita.
ah, não fui… ou não lembro, lembro mais da festa do cêá.
nessa eu não pude ir porque minha vó tava internada, tadinha.
(dois chopes, um escuro. vocês já tem comanda?)
pode anotar tudo numa só? tem problema, rita?
não, melhor assim.
(claro, chefia, à vontade.)
nunca fui tããão amigo assim do tavinho, acabei vindo porque o edu me ligou e não quis ser único que não apareceu.
com o edu eu também fiquei, rárá, ai, o edu…
porra, hein, rita.
o que tem? você comeu a izabel, que era lésbica! todo mundo sabe.
e daí? o que tem a menina ser sapata?
eu não posso dar pros teus amigos de turma mas você pode comer as minhas amigas todas?
não comi suas amigas todas.
izabel, luana, carolina — e carolina teve a machado e a pacheco! sacana! elas brigaram por sua causa, sabia?
rárárá, ah, verdade, mas, porra…
porra o quê. comeu, não comeu?
tá, vai, comi. mas a izabel… só o marlos não comeu a izabel.
(???)
ela era a maior porralouca, rita. deu pra toda nossa turma, no segundo semestre rolou até uma aposta, que o último a comer tinha que pagar uma cervejada. em dois meses a aposta acabou e éramos uns oito.
ai, carlos, como você mente!
o diogo nunca te contou isso? ele não é teu amigo? ele comeu a izabel da primeira semana de aula até o final do curso! ele tem até foto.
mas vocês, também, um pior que o outro.
rárárárá. porra!

Duas longas tragadas. Ele beberica o chope.

e o arnaldo, tá bem?
terminamos. tem dois anos. não falei mais com ele.
não sabia.
tou vendo.
Novo silêncio. Cigarro. Goles.

é que você tem uma aliança de noivado. achei que era do arnaldo.
ah, claro, mas o meu noivo é o marcos.
eu conheço?
difícil, ele é editor lá da revista. marcos amaral.
ah, da revista perdi contato. aliás, perdi contato com quase todo mundo da galera, larguei as redações. montei uma agência de consultoria em mídia. só trabalho com político e publiça agora.
ah, o diogo me contou tem um tempo. falou que você tá montado na grana. só vips na clientela.
rárárá.
viu? até rindo à toa, você já tá.
o diogo é foda. também não é assim. levou um tempo pro negócio se pagar. agora tá melhor.
claro, sei.
pô, mas parabéns do mesmo jeito.
ah, que gentil. (alguma ironia no trejeito.)
sério, bacana mesmo. você merece.

Ambos silenciam. Ela tem o instinto de tragar mas o cigarro já está no filtro. O lugar encheu um pouco mais. Nova rodada de chopes.

acho que a gente não se via tem mais de 5 anos, hein, carlos.
tudo isso?
você ainda tinha cabelo, eu lembro.
nossa, meu cabelo.
na faculdade você era cabeludo. achava tão bonito.

Carlos passa a mão na calvície.

outro dia o marcos me perguntou de uma foto que achou perdida no computador: lembra da viagem pra blumenau?
você tem foto daquela viagem?
nem eu lembrava. acho que a carol pacheco tinha uma daquelas cybershots, ela que bateu a foto. nós dois e um tiozinho engraçado no meio.
porra, o tio otto, ele era o dono da pousada!
foi boa aquela viagem.
ô.

Chega o garçom com os chopes.

a gente já tava junto ali?
mais ou menos, acho que a gente voltou namorando, mas fomos naquela “vamos ver o que rola”.
a gente não foi junto, no mesmo carro?
não. eu fui com a luana e a izabel.
então eu fui de ônibus?
e a luana me falou na estrada que já tinha ficado contigo antes da izabel. a gente parou num posto pra fazer xixi e ela contou assim, à toa.
não lembro de como fui pra blumenau.
aí fiquei com aquilo na cabeça.
o quê?
que você iria me comer assim como comeu a izabel e ela, comer e depois comer outra depois.
a gente nem namorava, né, rita.
mesmo assim. achei ruim.
mesmo assim você quis, né.
ah, é diferente.
diferente?
eu gostava de você. gostava de saber que você estava comigo.
a gente estava sempre junto naquela época.
acho que foi por isso que a luana me falou de vocês.
não entendi.
ela ficou puta de você ter gostado mais de mim.
é?
não sei. acho. mas quando a gente chegou em blumenau eu resolvi que não ia dar pra você lá.
e não deu mesmo.

Rita pede licença para ir ao banheiro. Enquanto ela se ausenta, Carlos confere seu celular e pede mais chopes. Chegam pouco antes dela voltar, visivelmente alegre. Carlos não lembrava de como Rita era bonita quando sorria namorada dele.

e você vai continuar solteiro?
não é de propósito.
não?
ah, é meio complicado, já engatei uns namoros e quase me casei.
como quase?
faltando 15 dias me disse que o analista tinha falado para ela colocar em perspectiva o casamento e as suas metas de vida.
e daí?
ela chegou à brilhante conclusão de que seu foco naquele ano deveria ser o mestrado em geometria analítica…
ui.
… e disse que poderíamos continuar juntos, casar depois. uma choradeira.
e como você reagiu?
sei lá, 6 meses naquela função, vivendo o casamento, procurando apartamento, eu vendi o carro, tirei grana emprestada dos meus pais e a porra dum analista diz que o melhor era terminar um mestrado que ela enrolava fazia 3 anos?
que coisa.
larguei de mão, falei pra ela enfiar o mestrado e o analista no cu, desapareci total, pedi uns dias de folga na firma e me enfiei numa viagem de 2 meses no nordeste sem falar com ninguém, sem internet, sem celular, só ligava pros meus pais de semana em semana.
e ela?
nunca mais soube dela. nunca mais quis saber.
sabe, jamais imaginei ver você magoado por mulher.
porra. filha da puta. maluca.
calma, querido, já passou.
mas teve uma coisa, acho que foi aí que minha ficha caiu.
ficha?
daquela noite, a melissa.
ai, carlos, não precisa disso também.
tou falando sério. fui muito escroto.
isso você foi mesmo. mas o tempo, sabe?
é. tem o tempo.
a gente acaba vendo que não tinha como deixar de ser aquilo, vai vendo como as situações vão se costurando.
eu não tinha o direito.
foi uma coisa que aconteceu e não era pra eu ver. hoje eu entendo melhor.
eu nunca te perguntei como você se sentiu ao saber.
péssima. emagreci doze quilos e depois engordei 25 em um ano.
caralho. peraí.
sim.
meus pais queriam me internar. aí um dia conheci o arnaldo na internet.
internet?
sim, e namoramos 2 anos.
nossa.
o arnaldo me fez ser mulher de novo. devo isso pra ele.

Os olhares se perdem nesse instante. Mas se cruzam por um breve segundo e Rita sorri. Um sorriso outro. Carlos não soube como reagir e suspirou.

minha mãe vive perguntando de você. ela não se conforma que a gente tenha terminado.
eu sei, ela vivia me ligando nos meus aniversários.
sério?
sim, ela não te falava?
não.
outro dia mesmo ela me ligou, era já de noite. perguntou se a gente tinha terminado por alguma galinhagem sua…

… mas eu menti, fica tranquilo. disse a versão oficial. que a gente a gente vinha discutindo a relação há tempos e um dia achamos melhor separar, cada um com seu canto.
minha mãe é foda.
ela é divertida, a gente sempre dava risadas.
porra, desculpa por tudo. mesmo.
desculpar o quê?
a merda que fiz. o porre. comer a melissa no banheiro da casa dos pais dela, onde eu estava com a cabeça? você a dez metros dali. só podia dar merda.
era uma festa, a gente andava brigado, você tinha bebido e cheirado também. e…
ah, não justifica.
… deixa eu terminar! e a melissa era minha amiga, sim, mas sempre foi de fazer merda com homem. bem típico dela.
porra, você vendo nós dois sairmos do banheiro, o seu olhar, não esqueço.
e eu também te conhecia já, né. enfim. você ia acabar comendo alguém, foi ela.
eu não fiz isso, rita. eu não saí te chifrando adoidado.
eu também já estava cansada, carlos. eu só não fui embora com outro homem porque não conseguia mais pensar em homem direito.
eu não vi, né.
você não via nada além de você mesmo.
me perdoa, porra.
eu já perdoei você, juro. aliás, eu até entendo a situação melhor agora.
como assim?

Rita acende outro cigarro.

você também?
sim, uma vez, tem uns meses.

estava viajando com umas amigas de férias, só as meninas da faculdade, tiramos uma semana em salvador logo depois do carnaval. uma noite acabei ficando com um cara, fomos prum motel.
rapaz.
pois é.
mais um?
claro.
garçom, mais dois, o dele escuro.

e quer saber, eu estava pronta pra contar tudo pro marcos, tinha até ensaiado sozinha — olha a cena — no banheiro da redação.
caralho.
e ele não me chega em casa com a cara mais feliz do mundo? tinha sido promovido a editor. ia ganhar o dobro. queria me levar pra jantar.
sei.
deu uma pena, aquele homem não precisava ouvir que era corno.
rárárá.
e no dia seguinte vi que acordei igual, sabe, o marcos ainda era o marcos. fui acordando ao lado dele e deixando pra lá. a sensação agora é de que foi uma daquelas coisas de juventude.
uma daquelas trepadas perdidas.
e acabei deixando assim, porque não teve nada a ver com ele e a vida seguiu.
sei, sei.
existe uma culpa, sabe, lá no fundo… mas o que eu sinto pelo marcos é tão mais vivo que isso nem importa. ai, tá tarde, já, né.
sim, acho que podemos fechar por hoje.
faltou um brinde ao tavinho, vamos tomar essa última por ele.
ao tavinho e à cidade de são salvador da bahia de todos os santos!
ai, carlos, você não existe.

Rita olha o relógio e instintivamente mexe na bolsa. Carlos parece mais vazio, relaxado. Chamam o garçom e pedem a saideira e a conta. Vão dividir por dois.

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