Chope

Leandro Godinho
outras cousas
8 min readSep 13, 2018

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Casal sentado numa mesa de bar, final de tarde, bar não muito cheio, apesar de já barulhento. Ela fuma.

… então agora você fuma?

fumo. desde que conheci o arnaldo, ele fumava muito, acabei indo atrás.

ô, garçom. dois chopes, o meu escuro faz favor, querido. e um cinzeiro.

tem problema fumar aqui, moço?

(não, dona, pode fumar, já trago o cinzeiro.)

engraçado que você detestava fumaça de cigarro, comprava até umas brigas.
sim… porra, o tavinho morto. sabia que eu fiquei com ele? foi o primeiro cara que beijei na facul.
acho que lembro disso, foi uma festa no centro acadêmico?
não, antes dessa, teve uma chopada, acho, lembro tinha muita maconha, MUITA.
ah, não fui… ou não lembro, lembro mais da festa do cêá.

nessa eu não pude ir porque minha vó tava internada, tadinha.
(dois chopes, um escuro. vocês já tem comanda?)

pode anotar tudo numa só? tem problema, rita?
não, melhor assim.
(claro, chefia, à vontade.)
nunca fui tããão amigo assim do tavinho, acabei vindo porque o edu me ligou e não quis ser escroto.
com o edu eu também fiquei, rárá, ai, o edu…
porra, hein, rita.
o que tem? você comeu a izabel, que era lésbica! todo mundo sabe.
e daí? o que tem a menina ser sapata?
eu não posso dar pros meus amigos de turma mas você pode comer as minhas amigas todas?
não comi suas amigas todas.
izabel, luana, carolina — e carolina teve a machado e a pacheco! sacana! elas brigaram por sua causa, sabia?
rárárá, ah, verdade, mas, porra…
porra o quê. comeu, não comeu?
tá, vai, comi. mas a izabel… só o marlos não comeu a izabel.
(???)
ela era a maior porralouca, rita. deu pra toda nossa turma, no segundo semestre rolou até uma aposta, que o último a comer tinha que pagar uma cervejada. em dois meses a aposta acabou e éramos uns oito.
ai, carlos, como você mente!
pô, o diogo nunca te contou isso? ele não é teu amigo? ele comeu a izabel desde a primeira semana de aula até o final do curso! ele tem até foto.
mas vocês, também, um pior que o outro.
rárárárá. porra!

Acende outro cigarro. Duas longas tragadas. Ele beberica o chope.

e o arnaldo, tá bem?
terminamos. tem dois anos. não falei mais com ele.
bah, não sabia.
tou vendo.
é que você tem uma aliança de noivado. achei que era do arnaldo.
ah, claro, mas o meu noivo é o marcos.
eu conheço?
difícil, ele é editor lá da revista. marcos amaral.
ah, da revista perdi contato. aliás, perdi contato com quase todo mundo da galera, larguei as redações. montei uma agência de consultoria em mídia. só trabalho com publicidade, agora.
ah, o diogo me contou tem um tempo. falou que você tá montado na grana. só vips na clientela.
rárárá.
viu? até rindo à toa, você já tá.
o diogo é foda. também não é assim. levou um tempo pra gente reaver o capital investido. agora tá melhor. pô, mas parabéns do mesmo jeito.
ah, que gentil. (alguma ironia no trejeito.)
sério, bacana mesmo. você merece.

Ambos trocam olhares e silenciam. Ela tem o instinto de tragar mas o cigarro já está no filtro. O lugar encheu um pouco mais. Carlos pede mais dois chopes, o dele escuro. Rita se emocionou com a franqueza que percebeu nas palavras de Carlos.

acho que a gente não se via tem mais de 5 anos, hein, carlos.
tudo isso?
você ainda tinha cabelo, eu lembro.
nossa, meu cabelo.
na faculdade você era cabeludo. achava tão bonito.

Riso encabulado, Carlos passa a mão na calvície, quase por moto-controle.

outro dia o marcos me perguntou de uma foto que achou perdida no computador: lembra da viagem pra blumenau?
você tem foto daquela viagem?
nem eu lembrava. acho que a carol pacheco tinha uma daquelas cybershots, ela que bateu a foto. nós dois e um tiozinho engraçado no meio.
porra, o tio otto, ele era o dono da pousada!
foi boa aquela viagem.
ô.

Silêncio cúmplice. Chega o garçom com os chopes.

a gente já tava junto ali?
mais ou menos, acho que a gente voltou namorando, mas fomos naquela “vamos ver o que rola”.
acho que na primeira noite você me convidou pra dormir contigo, porque tava frio.
e você ficou tentando me comer.
foi?
sim. sacana. deitou de conchinha e ficava me sarrando, a carol logo na outra beliche.
rárárá. verdade. mas, porra, você tava rebolando, vai.
bobo. na frente da carol? ela toda sem-graça que tinha dado pra você não tinha nem um mês.
ah, mas foi uma parada que rolou de momento, uma rapidinha. ela tinha até namorado, um cara do exército.
isso, sargento, ubiratan o nome dele, ela dizia que o namorado tinha uma piroca enorme, que machucava.
sério? bah, olha isso.
sério, e ela adorava aquilo.
rárárárá.
ela agora mora na frança, casou com um sueco.
chique.
pra você ver.
éramos tão felizes naqueles dias.
(…)
parecia que a vida seria sempre um grande dia, é a impressão que levo.
e agora?
agora me preocupo mais com as horas.
é…

Rita pede licença para ir ao banheiro. Enquanto ela se ausenta, Carlos confere seu celular e pede mais chopes. Chegam pouco antes dela voltar, visivelmente alegre. Carlos se espanta, no seu íntimo, fazia tempo que não percebia como Rita era bela.

e você vai continuar solteiro?
não é de propósito.
não?
ah, é meio complicado, já engatei uns namoros e quase me casei.
como quase?
faltando 15 dias ela disse que o analista tinha falado para ela colocar em perspectiva o casamento e as suas metas de vida.
e daí?
ela chegou à brilhante conclusão de que seu foco naquele ano deveria ser o mestrado em geometria analítica…
ui.
… e disse que poderíamos continuar juntos, casar depois. uma choradeira.
e como você reagiu?
sei lá, me deu a sensação de brochar. estávamos há 6 meses naquela função, vivendo o casamento, procurando apartamento, eu vendi o carro, tirei grana emprestada dos meus pais e a porra dum analista diz que o melhor era terminar um mestrado que ela enrolava fazia 3 anos?
sim, sim, que coisa.
larguei de mão, falei pra ela enfiar o mestrado e o analista no cu, desapareci total, pedi uns dias de folga na firma e me enfiei numa viagem de 2 meses no nordeste sem falar com ninguém, sem internet, sem celular, só ligava pros meus pais de semana em semana.
e ela?
nunca mais soube dela. nunca mais quis saber.
sabe, jamais imaginei ver você magoado por mulher.
porra. filha da puta. maluca.
calma, querido, já passou.
mas teve uma coisa, acho que foi aí que minha ficha caiu.
ficha?
daquela noite, a melissa.
ai, carlos, não precisa disso também.
tou falando sério. fui muito escroto.
isso você foi mesmo. mas o tempo, sabe?
é. tem o tempo.
a gente acaba vendo que não tinha como deixar de ser aquilo, vai vendo como as situações vão se costurando.
eu não tinha o direito.
foi uma coisa que aconteceu e não era pra eu ver. hoje eu entendo melhor.
eu nunca te perguntei como você se sentiu ao saber.
péssima. emagreci doze quilos e depois engordei 25 em um ano.
caralho. peraí.
sim.
meus pais queriam me internar. aí um dia conheci o arnaldo na internet.
internet?
sim, e namoramos 2 anos.
nossa.
o arnaldo me fez ser mulher de novo. devo isso pra ele.

Os olhares se perdem nesse instante. Mas se cruzam por um breve segundo e Rita sorri. Um sorriso outro. Carlos não soube como reagir e suspirou.

minha mãe vive perguntando de você. ela não se conforma que a gente tenha terminado.

eu sei, ela vivia me ligando nos meus aniversários.

sério?

sim, ela não te falava?

não.

outro dia mesmo ela me ligou, era já de noite. perguntou se a gente tinha terminado por alguma galinhagem sua…

(!!!)

… mas eu menti, fica tranquilo. disse a versão oficial. que a gente a gente vinha discutindo a relação há tempos e um dia achamos melhor separar, cada um com seu canto.

minha mãe é foda.

ela é divertida, a gente sempre dava risadas.

porra, desculpa por tudo. mesmo.

desculpar o quê?

a merda que fiz. o porre. comer a melissa no banheiro da casa dos pais dela, onde eu estava com a cabeça? você a dez metros dali. só podia dar merda.

era uma festa, a gente andava brigado, você tinha bebido e cheirado também. e…

ah, não justifica.

… deixa eu terminar! e a melissa era minha amiga, sim, mas sempre foi de fazer merda com homem. bem típico dela.

porra, você vendo nós dois sairmos do banheiro, o seu olhar, não esqueço.

eu já perdoei você, juro. aliás, eu até entendo a situação melhor agora.

como assim?

Olhar com ironia, close no olhar dela.

você também…?

sim, uma vez, tem uns meses.

estava viajando com umas amigas de férias, só as meninas da faculdade, tiramos uma semana no rio logo depois do carnaval. uma noite acabei ficando com um cara, fomos prum motel.

bah.

pois é.

mais um?

claro.

garçom, mais dois, o dele escuro.

Rita acende outro cigarro. Tensa. Zoom nas mãos acendendo o Zippo.

e quer saber, eu estava pronta pra contar tudo pro marcos, tinha até ensaiado sozinha — olha a cena — no banheiro da produtora.

rárárá. caralho.

e ele não me chega em casa com a cara mais feliz do mundo? tinha sido promovido a editor. ia ganhar o dobro. queria me levar pra jantar.

sei.

deu uma pena, aquele homem não precisava ouvir que era corno.

rárárá.

(dois chopes, um escuro.)

ôpa, brigadão, campeão!

e no dia seguinte vi que acordei igual, sabe, o marcos ainda era o marcos, eu ainda era a rita… uma semana e tinha horas que me surpreendia de lembrar daquele lance no rio. a sensação agora é de que foi uma daquelas coisas de juventude.

sim, uma daquelas trepadas perdidas.

e acabei deixando assim, porque não teve nada a ver com ele e a vida seguiu.
sei, sei.
existe a culpa, sabe, lá no fundo… mas o que eu sinto pelo marcos é tão mais vívido que não acho certo corroer nosso vínculo por conta de uma mesquinharia. ai, tá tarde, já, né.
sim, acho que podemos fechar por hoje.
nunca achei que fosse me fazer tão bem me abrir assim com você.
sinceramente, eu também não imaginava que ME faria bem te ouvir.

Rita olha o relógio e instintivamente mexe na bolsa. Carlos parece mais vazio, relaxado. Chamam o garçom e pedem a conta. Vão dividir por dois. Ela se levanta logo após deixar sua metade na mesa e se despede de Carlos. Parece apressada, como se quisesse fugir sem levantar suspeitas.

Rita queria sair do bar antes que Carlos percebesse que ela deixou na mesa um cartão onde havia seu telefone e e-mail pessoal.

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