Eu te amo, porra.

Leandro Godinho
outras cousas
Published in
7 min readJun 20, 2019
Avenida Paulista em registro do autor

Você deveria ficar.

Quando eu digo essas palavras, não sei onde estou com a cabeça. Mas o que eu sei, basta: Flor está ali diante de mim, sentada no sofá da sala do quarto e sala que alugo a sete minutos de caminhada da praia de Amaralina, ainda com as roupas do dia anterior, certamente da noite anterior, de quando ainda não nos conhecíamos.

Sobe da rua um cheiro de pão recém-assado, o cheiro de Flor tirando a blusinha, e depois desfivelando o cinto, e Flor então foi desabotoando a saia que se vestia fechando botões, sete deles, da barra na altura das canelas subindo até a cintura. O apartamento é tomado por aquela Flor de pé naquela sala com os braços ocupados em desarmar o encaixe nas costas que prendia o sutiã enquanto me perguntava se eu ia ficar ali parado, com aquela cara de besta.

Ainda estamos na cama quando eu digo a ela uma segunda vez naquele dia, sério, você deveria ficar aqui comigo. Então ela diz que não vai ficar porque só está em Salvador de férias, aproveitando que um dos irmãos mora na cidade para passar duas semanas numa cidade com sol e pessoas sem sotaque de paulista.

Mesmo assim ainda acho que você devia ficar, e dessa vez há um tipo de cumplicidade na minha voz que ela reconhece com a palma da sua mão aberta que toca o meu peitoral e ali fica por alguns segundos, e não sei se essa pequena carícia quer me dizer que ela adorou que eu pedisse que ela ficasse ali, mas é o que quero que seja.

Na noite passada Flor era só uma mulher que vestia muito preto que o Binho tinha trazido com ele para tomar uma cerveja com a nossa turma. Contrastando com o breu do vestido, havia tatuagens nos braços e tinta rosa no cabelo, tinta rosa, tons de azul. Em dado momento, começamos a conversar em separado do resto da mesa sobre o Transa do Caetano Veloso e que eu tinha uma vitrola no meu quarto e sala e o Transa em vinil ao lado dessa vitrola, e que a gente podia sair dali que o bar já iria fechar, são quase duas da manhã, lá no meu quarto e sala tem umas latinhas na geladeira e o Transa, e ela então fez-se muito séria diante da minha argumentação que propunha uma espécie de armadilha para ela se ver embriagada e emocionada com músicas que ela adorava longe de casa e dentro do quarto, talvez já sobre a cama, de um estranho sedutor, muito séria e dir-se-ia, assim mesmo, dir-se-ia subitamente sóbria, cruzou os braços e as pernas, quebrou um tanto o pescoço para a esquerda e lançou um desafio.

Só sairia daquela mesa para o tal quarto e sala se houvesse uma padaria perto, e perto ela queria dizer a passos de distância do meu apartamento, onde ela pudesse pedir uma porção de pão na chapa com café quentinho ao acordar, ou quem sabe mesmo antes de dormir, e essa ressalva, ou quem sabe mesmo antes de dormir, trazia uma nota de esperança a meus ouvidos e ela decerto o sabia. O quarto e sala era vizinho de porta de uma padaria, quero dizer, o prédio onde fica esse meu modesto quarto e sala, bem, ele é vizinho de porta de uma padaria e pedi vamos, e ela disse, vamos, e fomos.

Flor levantou da cama e vestiu a roupa espalhada no chão da sala. Já vestida aparece no vão da porta do quarto e fica ali, um sorriso no rosto enquanto eu me sento numa das quinas do colchão apenas sendo, nada na cabeça mas então lá está Flor e me dou conta de tudo outra vez, a grande tatuagem com um rosto de uma guerreira em pintura de guerra que cobria todo o braço esquerdo, pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora, Flor abrindo a última latinha enquanto dança, os cacheados de Flor colorindo a luz do apartamento, por que você não me beija logo, homem? Ela pergunta se eu não vou levantar para a gente descer e tomar café, são quase onze da manhã, eu me levanto cedo todo dia em São Paulo só pra tomar café com pão na chapa, é o que mais gosto de lá, das padarias.

Do lado de fora do prédio, o cheiro de sonho frito e pão quentinho e café passado parece ter tomado conta da cidade e Flor me beija sem se demorar na minha boca, porque me puxa pela mão em direção a uma das mesinhas que está vaga dentro da padaria.

Comemos calados mas não aquele silêncio entre estranhos que não sabem o que dizer e mais do que não sabem, não querem saber, não querem falar. Fico observando a alegria que toma conta de suas mãos pegando a fatia de pão com a ponta dos dedos e quando ela se dá conta de mim, diz que se eu não pegar a outra fatia logo ela quer para ela, e diz isso de boca cheia.

Voltamos a nos ver no dia seguinte, quando resolvo caminhar com ela pela orla da Praia do Forte até o Farol da Barra. Ela traz consigo uma câmera fotográfica no pescoço que nos garante a atração dos ambulantes que fazem ponto na orla a serviço dos bares, restaurantes e barraqueiros que dominam as areias da praia com seus guarda-sóis. Flor caminha debaixo do sol como se não fosse calor, um talento que invejo. A lente da sua Canon faz registros do meu rosto, de um garoto sem camiseta que vende miçangas, de uma panorâmica da areia tomada pelas barracas, de uma mulata com o branco dos olhos cor de creme que nos ofereceu assentos perto do mar com as duas primeiras rodadas de cerveja pela metade do preço.

Com a primeira latinha em mãos e o mar a meu alcance a poucos passos, contei do dia em que desisti de morar em São Paulo. Há coisa de quatro meses passados, cheguei na firma onde trabalhava e avisei aos caras que estava pedindo o boné. Bati o pé e vi que tinha direito a uma grana pelos tempos trabalhados, mais de dez anos, três deles sem tirar férias e nenhuma falta, nenhum atestado médico. Peguei a grana e vim para Salvador e ter como único compromisso o mar a caminhadas de distância. A proprietária do meu quarto e sala jamais me incomodava, porque eu tinha adiantado uns bons cinco meses do aluguel. Deixei crescer barba e cabelos. Tatuei uma lua nova no antebraço esquerdo. Quando tudo se encaminhava para o nada, você apareceu, eu pensei em voz alta e me declarei por acidente.

E você queria que eu ficasse, ela emendou.

Quero.

Só que eu não posso, meu amor. Eu trabalho. Eu preciso voltar pra São Paulo e trabalhar.

Você pode trabalhar aqui em Salvador.

Não, não posso, não.

E nesse dia ela não foi lá pro quarto e sala.

Ela apareceu dois dias mais tarde. Mochila nas costas, buzinou a campainha e quando olhei pela janela da sala para ver quem me chamava na rua, disse para eu descer rápido que ela já havia pedido um misto-quente para a gente. Lá pelo meio do sanduíche, me contou que o voo dela decolava dali a três dias, e que, queria visitar o Pelourinho naquela tarde, onde ela queria fotografar mas queria que eu fosse junto. Catando as migalhas que restavam o prato, confessou que sentiu a minha falta.

Quando voltou a vestir a mochila para tomar o caminho do táxi, descer no aeroporto, passar pelo check-in, comprar um espresso, passar pelo raio-x, procurar o portão de embarque e aguardar o seu voo para Guarulhos porque para Congonhas estava caro demais, ela então, antes mesmo de tomar um banho para vestir a roupa da viagem, sentou comigo no sofá da sala e ouvi de sua boca pintada de um batom roxo muito escuro não era para você fazer falta, sabe, mas eu sei que vai fazer e não sei o que vai acontecer depois que eu começar a sentir a sua falta, então eu anotei meu endereço em São Paulo, e meu e-mail e até o meu Facebook e deixei ali num envelope do lado da sua cama.

Eu respondo que ela deveria ficar.

Você sabe que eu estou indo embora.

Eu te amo, porra.

Acho lindo que tu me ame, mas eu tenho que ir, merda.

E então eu desci com ela pelas escadas e abri a porta da rua e fiquei ali olhando Flor pegar o táxi e depois descer no aeroporto, passar pelo check-in, comprar um espresso, passar pelo raio-x, procurar o portão de embarque e aguardar o seu voo para Guarulhos porque para Congonhas estava caro demais. Aí voltei para o meu quarto e sala e meia hora depois me dei conta de que eu estava sozinho. Quero dizer, sozinho eu sempre estive naquele quarto e sala dentro daquela cidade desde que cansei de trabalho e pessoas, mas agora eu estava sozinho de uma nova forma, sozinho porque Flor não estava mais ali.

Ainda tinha dinheiro guardado e com ele comprei uma passagem de ida para São Paulo, aluguei um quarto, cortei o cabelo, comprei roupas, imprimi currículos. Arrumei outro emprego de merda para pagar as contas, arrumei um celular que não sei usar, comprei até um relógio.

Todos os dias levanto cedo para tomar café numa padaria diferente porque na pressa esqueci o envelope intacto, ao lado da cama.

--

--