Eu te amo, porra (versão revista & ampliada)

Leandro Godinho
outras cousas
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9 min readMar 9, 2021
A Avenida Paulista, em São Paulo (registro do autor)

O cheiro do pão quentinho me alcança ainda na calçada, antes que eu atravesse a entrada da padaria. Faço o pedido no balcão e sento numa mesinha vazia quase do lado de fora. Eu olho para o movimento lá fora, as pessoas começando seus dias e lá está ela, lá está Flor.

Eu ainda não sei que seu nome é Flor e que ela não tolera café fraco, não tenho como saber que ela vai entrar na padaria e se sentar à minha mesa, assim mesmo, sentando. Ela vai me olhar e dizer oi.

Oi.

O rádio que a moça do caixa escuta ressona pelo local e nos informa que são sete horas e quarenta e dois minutos da manhã de quinta-feira, dia 10 de maio; a greve dos servidores da prefeitura segue de pé devido ao impasse nas negociações iniciadas há uma semana; o Bahia não conseguiu sair do empate jogando em Feira de Santana.

Ela, depois de me dizer oi, segue falando.

Moço, desculpa eu sentar aqui na sua mesa mas preciso, sabe? Tem problema? Acho que vou te pedir para me pagar um café preto sem açúcar porque gastei minha grana toda, posso?

Não sei o que responder, na verdade, então digo que sim, sem problema. Só o café?

Os dentes contrastam com o denso escuro das pupilas. Seus cabelos descem em ondas sobre um dos olhos. Eu podia respirar a festa ou as festas em que ela havia passado a noite dentro da maquiagem cansada que ela vestia. Há algo parecido como um sol nascendo dentro de mim e não sei muito bem explicar, mas não vejo necessidade porque o sol a tudo aquece e enche de cor.

Um café preto sem açúcar e um pão na chapa com manteiga. E me diz que se chama Flor.

Prazer, Flor.

E então pergunta o meu nome. Vai perguntar mais. Vai sair falando comigo e me perguntando o que quer como se aquela manhã não fosse a primeira vez em que nos falamos e sem se importar se periga ser a última.

Eu digo a ela que me chamo Leandro e que moro ali na quadra. Há coisa de dois meses passados, cheguei na firma onde trabalhava em Campinas e avisei aos caras que estava pedindo o boné, saquei um dinheiro guardado no banco e vim para Salvador. Pergunto se ela é daqui. Moro em São Paulo mas nasci em Itabuna, ela diz. Conhece Itabuna, pergunta, e eu digo que tinha ouvido falar, a tia que me aluga o quarto e sala onde moro é de Itabuna, Dona Valquíria. É perto de Ilhéus, ela completa.

Chegam nossos pedidos: café preto sem açúcar para Flor, café preto adoçado para mim e mais dois pães na chapa com manteiga. Ela vai comer em silêncio. Eu também vou ficar em silêncio, com aquele sorriso de homem idiota que nunca viu mulher na vida. Ela me agradece a gentileza quando eu me levanto para pagar pelo nosso café e me pergunta se eu estou a caminho de algum outro lugar. Eu digo que só gosto de tomar o café ali, que vou voltar para o meu apê, ali perto. Ela pergunta se pode voltar comigo. Jura que não vai causar problema, que só quer uma cama ou um sofá para dormir um pouco. Então faz toda uma comédia de gestos e voz, diz pra mim, gato, você imaginava uma morena dessas na sua cama quando veio aqui hoje tomar café?

Sim, claro, vem comigo, o apartamento é aqui pertinho, eu fecho as cortinas para você descansar, e tento simular que estou rindo da graça do pedido e não de nervoso.

Ela se ajeita no sofá que tem na sala e quando eu retorno do quarto com uma toalha, um calção e uma blusa em mãos para ela não precisar dormir com a roupa da noite ela já apagou. Eu me pego ali no meio da sala fazendo silêncio e olhando para Flor, para aqueles fios tão escuros de cabelo, o batom que só resiste nas beiradas dos lábios, o gosto do café ainda na boca, o rímel borrado, a almofada que ela prendeu entre os joelhos ao deitar de lado e o par de all-stars brancos que ela deixou com as meias dentro de cada pé ao lado da porta. Fecho as cortinas mas deixo a janela aberta para o vento circular e resolvo dar um mergulho.

Quando ela acorda, eu já voltei da praia e estou na cozinha cortando cebola. Digo a ela que vou preparar um almoço para nós dois, massa com molho de tomate e pimentões, que tenho umas cervejas gelando no freezer, que, se ela quiser, tem até água quente, basta mexer na chave que tem no chuveiro. Peguei uma toalha e também um calção e uma camiseta para você vestir, estão ali na mesinha perto do sofá. Mas ela diz que prefere ficar ali me olhando cortar cebolas e depois picar os tomates e os pimentões e os dentes de alho, e quando já estou esperando a água na panela ferver para depositar o talharim, ouço Flor me dizer que ama ver homem na cozinha, ainda por cima quando é um homem sem camisa na cozinha, e completa, meus parabéns, visse.

A gente almoça na cozinha mesmo, os dois descalços, eu de pé, na bancada da porta que dá na sala, ela sentada na cadeira e com o prato numa das mãos, fazendo barulho com o talharim. Ela deposita o prato na mesinha ao terminar e diz que quer repetir, mas se levanta, pega na minha mão e me leva para o quarto. Sobe da rua o perfume de mais uma fornada de pão, o cheiro dela tirando a blusinha, e depois desfivelando o cinto, e Flor então foi desabotoando a saia que se vestia fechando botões, sete deles, da barra na altura das canelas subindo até a cintura. O apartamento é tomado por Flor de pé diante da minha cama com os braços ocupados em desarmar o fecho nas costas que prendia o sutiã enquanto me perguntava se eu ia ficar ali parado, com aquela cara de besta e o prato na mão.

Ainda estamos na cama quando eu digo a ela, em voz grave, você deveria ficar aqui comigo. Então ela diz que não vai ficar porque só está em Salvador de férias, aproveitando que um dos irmãos mora na cidade para passar duas semanas numa cidade com sol e pessoas sem sotaque de paulista.

Mesmo assim ainda acho que você devia ficar, e dessa vez há um tipo de cumplicidade na minha voz que ela reconhece com a palma da sua mão aberta que toca o meu peitoral e ali fica por alguns segundos, e não sei se essa pequena carícia quer me dizer que ela adorou que eu pedisse que ela ficasse ali, mas é o que quero que seja.

Ela me diz que precisa ir, que seu irmão já ligou umas quatro vezes para o seu celular e que havia prometido passar os próximos dois dias com os parentes em Itabuna. Mas eu volto, prometo.

Ela traz a mochila nas costas quando volta. Buzina a campainha e quando olho pela janela da sala para ver quem me chama na rua, diz para eu descer rápido que ela já pediu um misto-quente para nós dois. Lá pelo meio do sanduíche, vai me contar que teremos três dias nossos, todos nossos, antes do voo dela para São Paulo. Quer visitar o Pelourinho naquela tarde mesmo para fotografar por lá e quer ir comigo. Catando as migalhas que restavam o prato, confessa que sentiu a minha falta.

Eu não digo que já sinto a falta que ela vai fazer quando voltar para São Paulo, e no lugar de abrir a boca, faço um biquinho para ganhar um beijo. Quando eu estava na cama, vendo Flor se vestir para sair do meu apartamento há dois dias, eu pensava que seria difícil que ela cumprisse a promessa de voltar. Eu seria uma lembrança de suas férias em questão de algumas horas. Era uma delícia observar suas mãos fecharem os botões da saia, amarrarem os cadarços dos tênis, prenderem os cabelos num coque sobre a cabeça, fecharem o sutiã. Ela disse que havia combinado uma carona com uma tia que chegaria em minutos, eu disse que eu chaveava a porta depois, ela veio até a mim com um beijo e repetiu, eu volto, não esqueça.

Entrei no chuveiro, arrumei a cama, lavei a louça. Fui até a janela e fumei dois cigarros. Passei um café. Eu volto, não esqueça. Fui jogar meu baba de quinta-feira com a turma de Amaralina. Passei de volta em casa e saí para o aniversário de um dos camaradas do futebol. Mas eu volto, prometo. Na manhã seguinte, pedi um café preto sem açúcar, outro adoçado e mais dois pães na chapa com manteiga. Quando a atendente trouxe o pedido, vi que havia pedido para dois. Você imaginava uma morena dessas na sua cama quando veio aqui hoje tomar café? Decidi pegar uma praia. A cada mergulho, eu via uma Flor diferente entrando no mar, caminhando na areia, comprando queijo coalho, abrindo uma latinha de cerveja. Naquela noite, doeu ver um amigo levantar da mesa do bar minutos depois trocar mensagens via celular, a gata mandou avisar aqui que hoje tem, rapaziada, ele bradava.

Durante os dias que se seguirão, vamos sair cedo da cama para tomar café na padaria e depois andar até a orla de mãos dadas. Tenho inveja de seu talento para caminhar debaixo daquele sol como se não fosse calor. Perto da praia, ela saca da mochila a máquina de fotografias e enquadra o meu rosto, os garotos e garotas que vendem miçangas, as infinitas barraquinhas na praia. Depois é só escolher uma areia para ficar ou então um bar no calçadão. Voltamos para almoçar em casa e o sabor da fornada do começo da tarde que sempre vem adia o almoço para depois da cama, que se faz no chão da sala, sobre o sofá, numa das cadeiras da mesinha da cozinha.

Na última noite, digo a ela para irmos na Praça Castro Alves, que lá tem uma feirinha onde toca a banda de um conhecido, acarajé e ambulantes vendendo cerveja. Depois de duas latinhas, eu digo a Flor que a Dona Valquíria nunca me incomoda porque eu já tinha adiantado uns bons cinco meses do aluguel quando acertei com ela assim que cheguei de Campinas, quando Salvador era sossego, mas agora é outra coisa, e eu não sei direito que outra coisa é, mas não é mais sossego, não.

Você quer mesmo que eu fique, né.

Quero.

Só que eu não posso, meu amor. Eu trabalho. Eu preciso voltar pra São Paulo e trabalhar.

Você pode trabalhar aqui em Salvador.

Não, não posso, não.

Naquela noite, a gente não faz amor. Flor dorme, e eu fico na janela da sala. A rua vazia lá embaixo já não é mais a mesma rua de uma semana atrás. No final, acabo dormindo no sofá mesmo. Sonho com Flor chegando em casa e me procurando. Acordo junto com a primeira fornada daquela manhã.

O voo dela parte antes do meio-dia. Ela vai se arrumar para tomar um táxi, descer no aeroporto, passar pelo check-in, comprar um espresso, passar pelo raio-x, procurar o portão de embarque e aguardar o seu voo para Guarulhos porque para Congonhas estava caro demais. Só que antes mesmo de tomar um banho para vestir a roupa da viagem, se senta comigo no sofá da sala e escuto de sua boca pintada de um batom roxo muito escuro: não era para você fazer falta, sabe, mas eu sei que vai fazer e não sei o que vai acontecer depois que eu começar a sentir a sua falta, sabe, porque agora eu quero que você sinta falta de mim depois que eu for embora.

Eu respondo que ela deveria ficar.

Você sabe que eu estou indo embora.

Eu te amo, porra.

Acho lindo que tu me ame, mas eu tenho que ir.

E então eu desço com ela pelas escadas e abro a porta da rua e fico ali olhando Flor ir embora. Ela se virou para mim assim que o motorista fechou o porta-malas e fez um aceno quase invisível e acabou, ela entrou no carro e partiu.

Menos de meia hora depois que subo de volta para o meu quarto e sala, eu me vejo tão sozinho. Quero dizer, sozinho eu sempre estive naquele quarto e sala dentro daquela cidade desde que cansei de trabalho e pessoas, mas agora eu estava sozinho de uma nova forma, sozinho porque Flor não está mais ali.

Eu não consigo almoçar. Eu não quero ver o mar. Eu subo dois andares de escada e bato à porta de Dona Valquíria. Ela não entende porque eu quero devolver a ela as chaves do apartamento quando ainda tenho direito a mais três meses de aluguel pago. Eu respondo que preciso ir para São Paulo. E eu posso saber por que você precisa ir para lá tão depressa, meu filho? Para levantar cedo da cama todo dia e lembrar sempre de tomar o café numa padaria diferente. Dona Valquíria primeiro franze o cenho, mas depois suspira e me convida para entrar. Já que você gosta tanto de café, vem tomar esse que acabei de passar.

Maglore — Café Com Pão

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