Fascinação

Leandro Godinho
outras cousas
Published in
5 min readOct 28, 2015

No princípio, aquela mulher no vídeo — caseiro e provavelmente feito sem o seu consentimento, a julgar pelo ângulo que a câmera filmava tudo — era apenas mais uma vítima do machismo e da pornografia digital. Somente quando ela se levantou para se postar de joelhos e encaixar sua pélvis na boca do homem de quem chupava o pau nos primeiros minutos do vídeo é que reconheci seu rosto tão familiar — e entendi porque três colegas de redação me encaminharam mensagens pelo celular com o link para o vídeo no mesmo minuto, praticamente.

Porque aquela mulher era Carlinha.

As mensagens todas avisavam do conteúdo impróprio para o trabalho do link, mas a última que chegou também indagava: essa não é a Carlinha? Por conta dela que me retirei da minha mesa e fui até a copa da redação, deserta naquela tarde de sábado em que eu estava de plantão. Ali abri o vídeo, sem som. Carlinha olhava sem saber para a lente e para meus olhos, a milhares de quilômetros, meio bêbada de prazer. Em determinado instante, sua mão direita buscava o pau do sujeito e aí ela prendia a cabeça do homem, aquela boca que lhe chupava o sexo, entre suas pernas que se entrelaçavam num lótus proibidão ao mesmo tempo em que a mão direita cerrava-se no músculo inchado de porra e sangue daquele homem.

Nenhum dos três colegas que mandaram o vídeo sabiam o quanto aquelas imagens me eram caras já que não sabiam, afinal, que quando Carlinha pediu as contas do jornal havia um mês e tanto e decidiu partir para uma chance como trainee por um ano numa rádio belga, ela imediatamente pôs fim ao caso que mantínhamos fazia cinco meses, iniciado ali mesmo naquela redação, num desastroso plantão dominical que foi agraciado com uma queda de um boeing cheio de gente em Boston e uma chuva que alagou Florianópolis. Nenhum deles jamais saberia que assim que Carlinha fechava os olhos e todo o seu corpo parecia começar a gozar naquele vídeo, eu, machucado pela verdade do mundo, soquei uma violenta punheta ali mesmo na copa da redação, gozando na pia, silencioso e triste. Carlinha oprimia o pau do sujeito com sua mão enquanto ele lhe lambia as coxas e até lhe mordia a xota, o miserável.

Miserável, sim, porque eu sabia que o cheiro que Carlinha tinha ao gozar era o cheiro do carnaval. Inconfundível. Ele estava recebendo uma escola de samba inteira e afinadíssima nos pelos da barba em plena Bélgica e sequer devia estar se dando conta. Me vi tão longe de mim naquele instante que esqueci de subir as calças e fiquei ridículo com o pau mole e ainda pingando porra diante da pia da copa da redação, o olhar esvaziado e cego, meu ego nocauteado.

Em algum instante após a punheta, ou mesmo durante, essa dúvida que tinha muita pinta de certeza me atravessou o tesão instantâneo que se confundia com a memória da primeira vez que Carlinha e eu fodemos, ali mesmo naquela copa, ao término da nossa escala de plantão naquele domingo, uma madrugada, os dois cansados demais para pensar: e se depois de Carlinha eu nunca mais conseguir foder ninguém a ponto de realmente gostar de foder?

Aos quarenta anos a gente sabe mais ou menos como a vida vai ser: vai ser aquilo mesmo. Aos vinte, logicamente, esse tipo de pensamento é pior que cuspir na mãe, porém, vinte anos passados, o corpo (quando não o espírito) cansa e deseja uma cadeira, uma rede, uma brisa. O meu segundo casamento estava em frangalhos porque eu era um marido lamentável mas a Ana não queria sair de casa, nem eu queria que ela fosse embora. Estávamos cansados demais para brigar, cansados das contas que eram sempre mais, das alegrias pequenas cada vez menos, cansados de olhar para retratos de ambos há vinte anos atrás e tão melhores.

Ana apenas tratou de voltar a fazer sexo com outras pessoas, e foi o signo para eu fazer o mesmo. Trepar sempre vai ser melhor que brigar, afinal. Em casa o clima era de guerra-fria, aquela tensão que, na verdade, era maior que o conflito, pois não nos odiávamos, era apenas um amor que tinha se desgastado da maneira errada, mas era ainda amor, e nosso, ainda por cima. Eu e Ana, na verdade, havíamos inclusive retomado a nossa vida sexual, mas agora, como se o sexo fosse uma briga, eram trepadas onde amor não se fazia. Talvez porque, junto com o sexo, o que fazíamos fora do casamento nos fez retomar certas vaidades pessoais, voltamos a nos preocupar com o corpo, com as novidades no mundo, com a nossa performance e aí quando voltávamos a ser marido e esposa, se não havia amor na cama, havia certa culpa, fracasso e um carinhoso sentimento de dever.

Foi nesse ambiente em que Carlinha apareceu. Claro que agora ela havia ido embora e não havia sinais de que fosse voltar. Obviamente esse voltar não indicava ‘voltar para mim’, mas para o Brasil. O que havia ocorrido entre nós dois era aquele tipo de relacionamento que não era, e que portanto não admitia retomadas. Não trocávamos e-mails, ela não mandava torpedos, eu não curtia suas fotos no Facebook. Mas então eu me via com esses quarenta anos, o casamento de fantoche, a mulher que me fodia pensando no que eu havia sido, e agora Carlinha, longe, gostosa, feliz. Dali a algumas horas eu teria que voltar para casa e nós dois iríamos vestir a carapuça de casal para aparecer num churrasco de amigos. Eu passaria o churrasco todo de pau duro vendo a mão de Carlinha punhetando aquele cara — e se a Ana percebesse? Ela ia gostar da minha ereção e ia me querer dentro dela de novo?

Eu não sei, nunca soube. Eu pensava apenas em lamber as coxas de Carlinha, mesmo que cheias do sêmem daquele sujeito e dizer a ela que a amava, porra, que a amava e que por ela eu poderia desistir da mediocridade. Por ela eu me mandaria para a Bélgica, ou seja lá onde ela estivesse, para começar outra vez, para não ter somente quarenta anos mas ser ainda um homem capaz de falar em voz alta. Mesmo que meu amor fosse outra dessas verdades que perdem a validade, eu queria que ela acreditasse nele.

No mundo real, entretanto, a moça que fazia a limpeza do andar deu um grito de espanto ao se deparar com um sujeito parecendo embriagado, de calças arriadas, na copa da redação em plena luz do dia. O sujeito levou uma semana para convencer seus chefes a não o demitirem e pagou uma grana que ele quase não tinha pra não tomar um processo por assédio da infeliz faxineira.

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