Filmes americanos demais 2.0

Leandro Godinho
outras cousas
Published in
4 min readApr 18, 2019
Thelonious Monk e sua banda em 1959 (WNYC Studios)

American bar. Lá fora, chove. Lá dentro, eu e você nos acomodamos diante da bancada.

Tem um sujeito tocando no piano no andar de cima do local, mas no andar térreo, onde estamos, um sistema de som ambiente reproduz Miles Davis e sua banda — John Coltrane, Jimmy Cobb, Bill Evans, sujeitos desse naipe — atacando So What?. Assim que o baixo começa a conversar com piano e sopros imagino toda a banda às nossas costas, como se estivéssemos nos estúdios da Columbia em Nova Iorque e não na rua João Alfredo em Porto Alegre. Atrás do bartender, uma prateleira que exibe uma aquarela de uísques e conhaques e licores iluminada como se fosse um parque de diversões só que proibido para baixinhos.

Você pede um Mojito, com bastante hortelã e com um rum decente, Havana Club se houver. O bartender ri mas você não.

Por favor, você diz a ele.

Claro, minha senhora.

Traz também uma tequila, por favor.

Sim, minha senhora, pra já.

Minha senhora, eu repito quase num sibilo para você ouvir.

Você me cutuca, apenas porque não quer que o bartender desconte o gracejo no seu Mojito. Você rirá comigo logo a seguir.

Eu peço por um Dry Martini, e pontuo o meu pedido chamando o bartender de querido. Aliás, meu querido. Assim que peço minha bebida tenho a vontade de acender o marlboro mais vermelho da cidade na minha boca. Parei de fumar tem quatro anos, mas o cigarro reluta em desistir de mim. Olho para o lado, ou seja, olho para você, para seus ombros nus sem sardas, para seus brincos de prata que parecem candelabros art-déco de vestir, as unhas pintadas de azul escuro, o cabelo preso no topo da cabeça tal e qual um objeto de arte na parede de uma galeria e então deixo que uma das minhas mãos se abra para acariciar as suas costas, e dentro da carícia está a protuberância da sua coluna, os feixes de músculos das costas trabalhados no yoga.

Mais cedo, dançávamos no casamento da filha do seu chefe. Você cantarolava sobre se apaixonar ao pé de um ouvido meu, o que decerto me fez pensar que os músicos da festa eram bem melhores do que o são de fato. O seu chefe rodopiava pela pista com a esposa, mas mantinha os olhos na sua bunda.

A banda parou de tocar e entrou no lugar um DJ para animar os presentes com aquela seleção de canções mal equalizadas, esporrentas, brutais. Você me pediu para sairmos dali. No caminho, ao volante, sugeri um drinque e mais alguma música. Você está tão bonita, quero te olhar mais um pouco.

Mais do que bonita, você está sem calcinha.

A sua tequila chega primeiro, douradinha. Você a toma num gole só. Logo aparece o meu Dry Martini, uma dupla de azeitonas, a taça recém-tirada do freezer, sem retrogosto de gim vagabundo. No meio do primeiro gole lembro da segunda vez que fodemos. Foi dentro do carro que sua empresa tinha alugado pra você. Foi silencioso e bruto. Você subitamente encostou o carro no estacionamento do shopping. Eu fui por trás de você. Você se encharcou na terceira estocada. Na quinta você ganiu. Na sétima eu senti o gozo jorrar. Dois minutos depois quis fumar, mas não o fiz, porque você pediu. Gosto de tocar punheta lembrando de nós dois no carro.

Digo a você: lembra aquela do estacionamento?

Você sorri. Lembro.

Foi bom, né?

Nossa. Como.

Você está sem calcinha e eu ainda não sei disso, mas fico de pau duro e talvez você saiba.

Chega o seu Mojito. O bartender espera você sorver o primeiro gole sorrindo. Eu não sei, mas você já deu pra ele.

Anos atrás, numa noite de muitos Mojitos vagabundos, pediu pra ele não gozar dentro de você, na hora do gozo pediu pra ele não tirar e depois passou duas semanas grilada com aquilo, fodeu.

Você vai lembrar do garçom e daquelas duas semanas e depois, uau, sim, a razão que causou aquelas duas semanas, mas não agora, agora você apenas agradece a ele pelo Mojito estar como você gosta de Mojitos — bastante hortelã, Havana Club, guarda-chuvinha de enfeite na borda do copo.

O piano lá de cima retoma a função e é o som dele que agora ressoa no balcão. A música passeia entre nós e somos todos transportados para um sonho de Thelonius Monk. Neste sonho, você caminha num corredor que não leva a lugar algum mas que me permite observar você rebolando dentro do seu vestido de festa. É o mesmo vestido que você usava quando nos conhecemos, numa gala promovida pela empresa onde você trabalha, há dois anos. Já era madrugada quando você fez que ia se levantar da mesa onde conversávamos para ir embora e no final ficou foi comigo para vermos o sol nascer na varanda de um quarto de motel.

Você está tão bonita, quero te olhar mais um pouco.

O Dry Martini começa a escalar rumo às sinapses que ainda me restam. Você fica ali, olhos em mim. Eu não sei o que você olha em mim. Talvez você olhe coisas que jamais vi. Talvez você veja o homem que virei a ser. Talvez eu veja filmes americanos demais. Talvez eu esteja sem calcinha, você me diz ao ouvido.

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