Flor

Leandro Godinho
outras cousas
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7 min readJun 22, 2019
Avenida São Luís com a Líbero Badaró; São Paulo

O cheiro do pão quentinho me alcança ainda na calçada, antes que eu atravesse a entrada da padaria. Faço meu pedido no balcão e então me sento na primeira mesinha vazia que mapeio próxima do vão que dá para a rua com um livro de bolso em mãos. Eu olho para o movimento lá fora, as pessoas começando seus dias e lá está ela, lá está Flor.

Nesse instante eu não sei que seu nome é Flor, não sei que ela não tolera café fraco, não tenho como saber que ela vai entrar na padaria e se sentar à minha mesa, assim mesmo, sentando. Ela vai me olhar e dizer oi.

Oi.

O rádio que a moça do caixa escuta ressona pela birosca e nos informa que são sete e quarenta e dois da manhã de quinta-feira, dia 10 de maio; a greve dos servidores da prefeitura segue de pé devido ao impasse nas negociações iniciadas há uma semana; o Bahia não conseguiu sair do empate jogando em Feira de Santana.

Ela, depois de me dizer oi, segue falando.

Desculpa eu sentar aqui na sua mesa mas preciso, sabe? Tem problema? Acho que vou te pedir para me pagar um café preto sem açúcar porque gastei minha grana toda, posso?

Não sei o que responder, na verdade, então digo que sim, sem problema. Só o café?

Ela não sorriu ainda e seus cabelos descem em ondas sobre um dos olhos como se fosse uma das musas do cinema dos anos vinte. Eu podia respirar a festa ou as festas em que ela havia passado a noite a partir dos destroços dentro da maquiagem cansada que ela vestia. Sem maiores alarmes, o meu coração começou a bater com mais força, mais pressa, mais vontade de viver; talvez ela seja a mulher mais bonita que eu já tenha visto na vida.

Um café preto e um pão na chapa com manteiga. E me diz que se chama Flor.

Prazer, Flor.

E então pergunta o meu nome. Vai perguntar mais. Vai sair falando comigo e me perguntando o que quer como se aquela manhã não fosse a primeira vez em que nos falamos e sem se importar se periga ser a última, e a verdade é que não há como ser a última porque o coração que acelerou dentro do meu peito quer tomar conta de mim, quer pegar na mão dela e fugir.

Eu digo a ela que me chamo Leandro e que moro ali na quadra. Há coisa de dois meses passados, cheguei na firma onde trabalhava em Campinas e avisei aos caras que estava pedindo o boné. Chega. Bati o pé e vi que tinha direito a uma grana pelos tempos trabalhados, mais de dez anos, três deles sem tirar férias e nenhuma falta, nenhum atestado médico. Peguei a grana e vim para Salvador, ficar à toa, com o foda-se constantemente ligado e o mar a caminhadas de distância. Sem celular, sem internet, sem emprego, sem hora certa. Eu estava num quarto e sala onde a proprietária jamais me incomodava, porque tinha adiantado uns bons cinco meses do aluguel. Tudo o que fazia era vaguear pela cidade, queimar fumo, beber e dormir. Deixei crescer barba e cabelos. Tatuei uma lua nova no antebraço esquerdo. Quando tudo se encaminhava para o nada, você apareceu, eu pensei em voz alta e me declarei por acidente.

O café preto sem açúcar e o pão na chapa com manteiga chegam junto com a média que eu pedi acompanhada de outro pão na chapa e ela vai comer em silêncio. Eu também vou ficar em silêncio, com aquele sorriso de homem idiota que nunca viu mulher na vida. Ela vai me agradecer a gentileza e perguntar se eu deixo ela subir junto comigo de volta para o meu quarto e sala porque lá tem uma cama e ela está cansada e sem grana demais para caminhar de volta até o apartamento que alugou via airbnb para passar as suas férias na praia. Ainda que me ocorresse pensar (felizmente em silêncio e muito, muito rapidamente) que toda aquela manhã já se assemelhava demais a um roteiro possível de um filme nacional que precisaria de atrizes com peito de fora para não deixar a audiência dormir, eu disse a ela que sim, claro, vem comigo, o apartamento é aqui pertinho, eu fecho as cortinas para você descansar.

Enquanto ela dorme no meio da minha sala, eu vou vadiar. Quando eu volto para o apartamento um pouco depois do almoço ela já está de pé, me diz que tomou um banho e que passou um café. Diz que está de férias de seu emprego em São Paulo, capital, e que para lá irá voltar dentro de uma semana. Alugou um apartamento na Amaralina para passar os dias em Salvador. Me agradeceu por tudo e pela gentileza em tudo e que já estava de saída. Só tinha mais um pedido.

Posso enrolar um baseado para gente, meu lindo?

Foi dentro do baseado que eu disse a ela que a gente deveria aproveitar o dia e ir à praia, vamos procurar ali do calçadão de Amaralina uma mesinha, a cerveja sai pela minha conta. Flor respondeu que antes a gente devia pelo menos aproveitar melhor a cama do meu apartamento.

Eu digo a ela depois, no calçadão de Amaralina, com a boca molhada de cerveja e a fala saindo suave feito o mar de dentro de mim, que ela deveria pensar em voltar para o meu apartamento, que ela deveria dormir comigo essa noite e também nas noites que ainda virão. Que ela deveria gastar a semana que lhe resta em Salvador a meu lado.

Nos dias que se seguiram, Flor se instalou na minha morada, na minha cama, no meu corpo, nas minhas horas. Por ela voltei a tomar banho duas vezes por dia, deixei somente o bigode e costeletas, comprei uma Polaroid de terceira mão, um violão impossível de ser afinado e um pente de cabelos. Eu procuro não pensar nunca que aquela mulher já tem uma passagem comprada para ir embora e uma vida pronta a ser retomada em São Paulo, mas é justamente o que penso a cada dia quando acordo, mais quatro dias, mais três dias, depois de amanhã.

Estamos os dois sentados na sala do apartamento nus, um calor da porra. Eu concentrado na pele tostada de sol de Flor, no contraste da marca de biquíni com o quase roxo dos bicos dos peitos. Eu vou embora amanhã, tu sabes. Amanhã, eu repito, sem muita firmeza na voz, quase mudo. Fico aqui pensando, sabe, meu lindo, fico aqui pensando se você vai sentir minha falta quando eu for embora. Eu já sentia saudades mas a minha voz estava presa em algum lugar dentro de mim debaixo de um medo de começar a falar para Flor que eu já era outro e que quando ela fosse eu não seria mais quem eu havia descoberto em mim depois dela aparecer, e como a gente fala uma merda dessas para a mulher que a gente ama sem se despedaçar todo, a cada frase um pedaço do corpo virando farelo? Eu digo a ela que quando ela pegasse no sono de noite, eu ia amarrar seu corpo na cama e ela não teria como fugir de manhã cedo para aeroporto e São Paulo coisa alguma e ela me pergunta como um homem adulto pode ser tão besta, meu senhor, valhei-me, precisa acabar o homem hétero.

Decidimos que o melhor a fazer é aproveitar aquele último dia dela na praia e arranjamos uma areia para nós sem muita gente em volta para ficar os dois ali sem muito falar. Em algum momento da tarde na praia, deitados um ao lado do outro, digo a ela que eu vou sentir falta pra caralho dela ao meu lado mas Flor então rebate que queria ter ouvido eu dizer qualquer coisa assim há duas horas passadas, mas que achava importante de todo jeito eu dizer a ela.

No dia seguinte, arrumada para voltar para casa, Flor já se movia e falava como se já estivesse de volta à rotina de São Paulo e ao escritório de advocacia para o qual, imagino, disparava mensagens no celular que não saía mais de sua mão. Disse que talvez no ano que vem estaria de volta. Quem sabe? Tentou sorrir e fracassou. Eu pensava no sal que ficava na minha boca do suor que escorria de trepar com ela durante o dia e na marca de nascença que ela carregava na batata da perna direita que eu brincava que era um teste de Rorschach, hoje parece um coelho vidrado de anfetamina, hoje parece o fantasma do comunismo, hoje essa mancha está claramente feliz.

Depois de menos de uma semana, enjoei da minha vidinha, do meu apartamento, da lua nova no antebraço. Quando a punheta perde a graça, você está fodidamente só, cantou o poeta. Ninguém naquela cidade era tão bonito. Ainda tinha dinheiro guardado e com ele comprei uma passagem de ida para São Paulo, aluguei um quarto, cortei o cabelo, comprei roupas, imprimi currículos. Arrumei outro emprego de merda para pagar as contas, arrumei um celular que não sei usar, comprei até um relógio.

Todos os dias levanto cedo para tomar café numa padaria diferente.

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