Flor

Leandro Godinho
outras cousas
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4 min readAug 29, 2018

Apaixonei-me desgraçadamente por aquela mulher porque ela era, sobretudo, linda.

De algum modo que nenhuma ciência será capaz de explicar, o bico de seus peitos tinha gosto de cacau maduro. Os pêlos que ornavam a xoxota, por mais que não carregassem o perfume das margaridas, se mostravam suculentos dentro de suas calcinhas favoritas, dotadas de rendinhas no bumbum e amarelas em sua plenitude.

Toda linda e com olheiras profundas num sábado desses sem sol e sem chuva me parou no meio da calçada (eu caminhava em direção a uma padaria para o meu café da manhã), me entregou um desses telefones portáteis multifuncionais e me solicitou que lhe retratasse. Queria uma foto de seu rosto naquela manhã. Ela ainda tinha em si a noite anterior. Meio desajeitado, enquadrei seu rosto na telinha e executei o retrato. Ela não sorria e seus cabelos desciam em ondas sobre um dos olhos como se fosse uma das musas do cinema dos anos 20.

Desde então, tornou-se complicadíssimo tirar meus olhos de seu rosto. Não que eu tenha tentado com muito esforço. Sou preguiçoso feito as tardes em que vivia à toa na janela, fumando maconha, bebendo cachaça e olhando a rua. Há coisa de dois meses passados, cheguei na firma onde trabalhava e avisei aos caras que estava pedindo o boné. Chega. Bati o pé e vi que tinha direito a uma grana pelos tempos trabalhados, mais de dez anos, três deles sem tirar férias e nenhuma falta, nenhum atestado médico. Peguei a grana e vim pra Salvador, ficar à toa, com o foda-se constantemente ligado e o mar a caminhadas de distância.

Sem celular, sem internet, sem emprego, sem hora certa. Eu estava num quarto e sala onde a proprietária jamais me incomodava, porque tinha adiantado uns bons cinco meses do aluguel. Tudo o que fazia era vaguear pela cidade, queimar fumo, beber e dormir. Deixei crescer barba e cabelos. Tatuei uma lua nova no antebraço esquerdo. Quando tudo se encaminhava para o nada, apareceu Flor.

O retrato ficou bonito, ela me disse. Perguntou se eu era fotógrafo. Eu disse que não. Perguntei se ela me deixaria pagar um café com leite e um croissant, para ela colocar algo no estômago e não passar mal (exalava álcool na sua fala, que não era desconexa, pasmem). Ela sorriu e aceitou. Da padaria foi pro quarto e sala onde dormiu por dez horas seguidas. Acordou e agradeceu a cama, o café e o croissant. De nada, morena. Voltou no dia seguinte pela manhã, de banho tomado e uma mochila nas costas. Perguntou se eu queria ir à praia antes ou depois de lhe comer. Fomos à praia pouco antes do sol se pôr.

Flor se instalou na minha morada, na minha cama, no meu corpo, nas minhas horas. Por ela voltei a tomar banho duas vezes por dia, deixei somente o bigode e costeletas, comprei uma Polaroid de terceira mão, um violão impossível de ser afinado e um pente de cabelos na feirinha do domingo. Estava de férias de seu emprego, que era em São Paulo, capital. Voltaria para lá em três semanas.

Ela não era apenas lindíssima. Ela sabia que era lindíssima e me torturava o tempo todo com sua beleza. A Polaroid foi comprada porque ela queria posar pra mim durante o sexo, antes do sexo, depois. Fez questão que eu registrasse ela me chupando a rola com os olhos na lente. Executei uma boa série de closes à meia-luz de suas nádegas. Se depilou completamente para que eu pudesse fotografar-lhe o sexo desnudo. Enlouquecia de tesão ao ver as fotos e queria trepar novamente para tentar novos ângulos, outra luz, mais forte.

Nada disso, porém, se comparava ao seu rosto diante da câmera. Sabia sorrir, fechar os olhos, ajeitar o cabelo, fazer bico. Hipnótica. Era difícil tirar meus olhos de seu rosto e era difícil não querer fazer instantâneos em tempo real. O mais bonito de todos teria sido o do exato instante em que ela levantou os olhos para me dizer que iria embora em coisa de dois dias, São Paulo a aguardava. Estávamos sentados na mesinha do apartamento nus, no meio da tarde, um calor da porra e emaconhados. Sua pele estava tostada de sol, o que tornava o contraste com a marca do biquíni e o quase roxo de seus bicos dos peitos algo inesquecível. Ela parecia triste, ainda que tentasse soar indiferente.

Levantou dali para arrumar suas coisas, vestir uma roupa e me avisar que passaria os últimos dias das férias com os pais e a irmã. Disse que talvez no ano que vem estaria de volta. Quem sabe? Tentou sorrir e fracassou. Queria impedir aquilo tudo, mas só consegui ficar sentado olhando seu rosto até que se foi porta afora.

Resisti à sua ausência por uma semana, de péssimo humor. Nada acontecia naquela cidade. Me sentia estúpido, fedorento, encostado. Passei a enjoar com o cheiro dos baseados. Não conseguia mais sentir tesão nas polaróides, só tristeza. Ninguém naquela cidade era tão bonito. Ainda tinha dinheiro guardado e com ele comprei uma passagem de ida para São Paulo, aluguei um quarto, cortei o cabelo, comprei roupas, imprimi currículos. Arrumei outro emprego de merda para pagar as contas, arrumei um celular que não sei usar, comprei até um relógio.

Apaixonei-me desgraçadamente por aquela mulher porque ela era, sobretudo, linda. Todos os dias levanto cedo para tomar café numa padaria diferente.

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