Lucinha

Leandro Godinho
outras cousas
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10 min readMay 11, 2020

Lucinha correu para o portão de embarque, foi o que me contaram. Já tinha despachado as bagagens e até tomado um café com pão de queijo no aeroporto. Disseram ainda que sorria, mas eu jamais acreditei nessa parte. Lucinha correndo por um aeroporto e sorridente era algo bonito demais e eu não poderia suportar.

Só me restou caminhar até o mezanino do aeroporto, de onde daria pra ver o imenso jumbo que partiria dali para Paris com Lucinha lá dentro, seus olhos sob lentes escuras afixadas numa armação caríssima. Fiquei horas ali de pé, encarando o vidro. Famílias e amantes e amigos a sorrir e a adivinhar os aeroplanos, tomando sorvetes, mordiscando sanduíches — com sorte, nenhum deles jamais iria perder Lucinha para um momento de dúvida.

O avião sumiu no céu pouquíssimo após a decolagem. A culpa era toda minha. Sandra, irmã de Lucinha, me encaminhou uma mensagem por celular logo após — “vc só pode ter merda na cabeça”. Resumia bem o estado de coisas, o meu estado de coisas ultimamente.

Lucinha havia me olhado e dito que iria embora caso eu não tomasse a minha decisão. Ela fumava e o cigarro parecia queimar mais depressa em seus dedos quando tensa. Ela havia pintado as unhas de azul escuro, estavam bonitas. Talvez eu não tenha acreditado, ali na hora, que ela realmente fosse embora. Talvez o azul das unhas tivessem desviado meu foco de atenção. Talvez eu quisesse mostrar a ela que, mesmo que eu não tomasse a decisão nos seus termos, ela, Lucinha, me amaria o bastante para não me deixar — e depois me pediria desculpas, me escreveria desculpas, me cobriria de beijos desculposos.

Ela não me amava. Não assim, como eu queria que fosse. Eu só poderia ter merda na cabeça para acreditar que Lucinha seria tão submissa. Mesmo porque, antes de Lucinha, houve Sandra, sua irmã mais velha. Sandra morou comigo durante um par de anos e nos separamos quando a fadiga apareceu no meio de nós. Menos de duas semanas após vender o nosso apartamento, Lucinha, então a minha ex-cunhada, me viu saindo do escritório da agência — era um dia de reunião com clientes, eu de terno e olheiras, barbeado, uma gravata horrorosa. Ela tinha ido deixar seu currículo de estudante de arte, precisava de um estágio ou um emprego, e, para impressionar, usava um vestido não muito formal, os cabelos presos num coque, unhas descoloridas, sandálias de verão. Se tivessem nos vistos juntos na recepção, me demitiriam na hora, para contratá-la.

Foi uma conversa breve, e eu ainda constrangido pelo desconforto da lembrança de Sandra em Lucinha decerto não impressionei. Sequer fui capaz de lhe prometer uma força para ela conseguir a vaga. O constrangimento aumentou quando me dei conta de que, ainda durante essa tensa e breve conversa, Lucinha era uma mulher linda. No dia seguinte, no escritório, Paulo, que havia participado da entrevista de Lucinha, me disse que a garota havia mostrado um bom portfólio e boas ideias. Perguntou se seria problema ela começar o estágio acompanhando eu e o Mauro, meu diretor de arte. Uma semaninha só, pra ela pegar uns macetes com vocês. Depois a gente vê se ela continua. Claro, Paulo, por que não? Paulo era um dos sócios da agência, um dos meus chefes, um dos caras que poderiam me demitir qualquer dia desses.

Dois dias depois dessa conversa com Paulo, eis Lucinha de pé e sorridente, os cabelos ainda presos, unhas ainda descoloridas, calças jeans e blusa de manga, um casaquinho. De pé no meio da sala de criação, Lucinha em coisa de meio minuto silenciou a dezena de duplas que ali trabalhavam. O Mauro me olhava, com uma nesga de esperança que se abriu num erótico sorriso quando me pus de pé e caminhei na direção de sua nova estagiária. Durante cerca de uma semana, Mauro e eu fomos verdadeiros reis naquela sala.

Lucinha já estava na agência há quase três meses quando fomos almoçar juntos. Ela estava com os cabelos soltos, recém-cortados, um batom carmim e as unhas em vermelho bem vivo, combinavam com os tênis. Parecia ter os olhos tristes mas era cansaço, pois era uma semana puxada, véspera do dia das crianças. Ela esperou até estarmos no elevador a sós e então me disse que Sandra estava saindo com outro homem, disse assim mesmo, como se me dissesse que o dia estava quente ou que o elevador era muito lento. O nome dele era Sandro, não é irônico, Sandra e Sandro.

(Sim, era irônico. Mas foi um almoço silencioso dali em diante.)

Depois do episódio no elevador, ela pediu desculpas pela lembrança da irmã umas três ou cinco vezes. Na terceira ou na quinta, eu finalmente ri diante dela e então ela sorriu de volta. Parece brega dito assim porque não foi para você que ela sorriu. Eu acho que te devo um almoço, eu disse, e ela não parou de sorrir. Paguei o almoço dias depois, ela pediu um lugar aberto para fumar — fumava Marlboros vermelhos feito a irmã. Os olhos conservavam ligeira semelhança, bem como as maçãs do rosto, mas Lucinha possuía contornos mais doces nas sobrancelhas e nos ombros; caminhava sobre pernas mais finas e pés mais compridos. Possuía menos ironia e mais pressa. E lábios mais finos.

No almoço, disse que o tal de Sandro não era tão bonito quanto eu, e mesmo que ela não tenha tirado os olhos de mim ao sentenciar, eu fiz que não era tanto. Eu também não queria que ela soubesse por mim como um grande amor havia se transformado em pequenas mesquinharias. Não queria dizer a ela que, dois meses antes do final, Sandra decidiu que éramos ruins demais para termos um filho e abortou. Não quis dizer que, ao saber do aborto, bati de mão aberta no rosto da irmã. Ela não precisava saber que durante três semanas não nos falamos mesmo dividindo a cama e, em um par de vezes, trepamos mesmo assim. Eu poderia acabar confessando, pela corrente de memórias que haveria nisso tudo, que só havia guardado três fotos de Sandra comigo: o primeiro retrato que fiz de seu rosto, quando nem namorados éramos; uma foto de seus pés, que tirei numa viagem de carnaval; uma imagem desfocada que mostrava parcialmente seu rosto no momento do orgasmo, data desconhecida. Estas três fotos eram tudo o que havia restado porque o resto eu queimei numa fogueira no meio da sala, com uísque nacional e Jimi Hendrix. Só não fui expulso do condomínio depois disso porque subornei o síndico e o fiscal da imobiliária.

As palavras de Lucinha, desde aquele primeiro almoço, não mais encontraram obstáculos. E Lucinha não me poupava suas opiniões, citações e ideias. Ela passava por uma Holly Golightly tropical em seus melhores momentos. Um dia me roubou um beijo num final de expediente, perto da máquina de café, à guisa de primos que se escondem da vista dos avós nas férias de verão. Eu já tinha todo o discurso de fuga pronto, havia treinado em frente ao espelho, para não começar algo onde eu não poderia garantir minha segurança, como me apaixonar por Lucinha e iniciarmos um romance. Ela não me deixou dizer qualquer coisa: disse que me esperava na lanchonete do final da rua. Vou te esperar só cinco minutos, hein.

Desarmado, caminhei as duas quadras entre a agência e a lanchonete me fixando num mantra interno, “tente não parecer o idiota que você pode ser agora”. Ela usava os cabelos presos numa piranha, um coque propositalmente casual porque levava pouca maquiagem, sequer batom ou brincos. Estampada na blusa sem mangas e recortada na altura do umbigo lia-se o nome de uma banda para a qual eu já era velho demais. As unhas estavam negras, como em raras oportunidades. O all-star era o vermelho, seu preferido, sujo, mas charmoso.

Eu não tive a menor chance de fuga. Nenhum homem teria.

No espaço de uma semana, ela adquiriu o hábito de acordar na minha cama. Eu perdia qualquer objeção àquilo tudo diante de Lucinha seminua — era canalha que eu levasse minha estagiária pra cama, era imoral que ela fosse minha ex-cunhada, era desleal que eu não confessasse que ainda estava meio perdido na vida.

Então, numa dessas manhãs, ela despertou quando eu já estava na cozinha, tomando um café. Ela apareceu lá e disse que no dia seguinte, um domingo, seria uma “boa ideia” almoçarmos na casa da irmã, Sandra, minha ex. Olhei para ela na esperança de que fosse uma piada, uma pegadinha, uma senha qualquer. Era apenas a ideia de almoçarmos juntos, Sandra, eu, ela e Sandro, naturalmente. Acendi um cigarro e fiquei ouvindo ela dizer que sentia falta de almoçar com a irmã aos domingos. Faria sentido eu me negar se confessasse que eu não estava pronto para assumir nosso relacionamento para Sandra, nem pronto para reaparecer diante de seus pais agora de mãos dadas com a filha mais nova. Faria sentido demais para quem não estava diante de Lucinha naquela manhã, os olhos cheios de sono, de remela e os pés descalços.

Ao menos não dei vexames públicos no almoço de domingo, nem na janta do domingo seguinte com os pais, nem na festa de aniversário de algum dos primos, ou na ceia de natal e, inacreditável, nem no jantar de noivado de Sandra. Entre tais almoços e jantares e festas, Lucinha largou o estágio na agência porque uma editora ofereceu uma vaga melhor em seu departamento de ilustrações e me deu de aniversário um quadro que havia feito: era eu sentado de costas olhando uma moça que caminhava apenas de calcinha. Era bonito feito ela, o quadro.

Sandra já levava no anelar direito um bonito anel, tinha ido no meu apartamento visitar a irmã que estava no banho e eu contei a ela, não lembro as palavras, mas contei que não estava seguro daquilo tudo, Lucinha e eu juntos há seis meses; ela havia me cativado ainda frágil e me deixei levar. Sandra disse que Lucinha era uma mulher feito ela e que eu deveria me comportar feito homem e assumir meus crimes quando necessário.

No nosso aniversário de sete meses, Lucinha enfim perguntou se seria um problema ela se mudar de vez para o meu apartamento. De fato, ela só passava no apartamento dos pais, onde oficialmente morava, poucas horas. Mudas de roupas já habitavam meu armário, além da escova de dentes, da escova de cabelo, do carregador do celular, dos textos da faculdade e outros pertences que já faziam parte do meu apartamento, um tanto dela. Eu disse que ela deveria se mudar, se ela quisesse, mas o fiz sem aquela alegria toda que se esperava. Ela não gostou do tom da minha resposta e assim teve início nossa primeira briga digna de nota. Foi a primeira vez que jurei amor a ela assim, em voz alta, fora da cama ou de qualquer contexto óbvio.

Eu te amo, desgraça! Eu te amo, que merda, eu te amo. Foram essas as palavras e talvez o amor cheio de desgraça e merda não ficasse tão bonito a seus olhos. Ela recolheu os pertences e foi embora para a casa da irmã. Foi Sandra quem me pediu ao telefone para ir lá resolver a situação no dia seguinte.

Fui com o carregador do celular que ela tinha esquecido, flores e um eu te amo sem merda de recheio. Confessei que tinha medo de estragar tudo, medo de fazê-la ir embora, medo de perder outra vez. Disse que no dia seguinte eu iria a seus pais anunciar que iríamos morar juntos — houve um dado momento em que vislumbrei o perdão dentro dela e a partir daí eu diria qualquer coisa, por absurda que fosse, só para que ela voltasse comigo pra casa, o que ela fez. Queimei toda a minha dignidade e autoridade de homem mais velho do relacionamento ali, amassando as flores enquanto mendigava Lucinha de volta — eu podia sentir Sandra às minhas costas achando toda a situação patética.

Mas do instante em que ela voltou pra casa, vivemos uma espécie de glória. Levei um vinho caro na noite seguinte para anunciar a seus pais que estávamos indo morar juntos. A mãe dela chorou e me abraçou com a mesma sinceridade de quando levei a mais velha. Lucinha usava um vestido rosa comedido, unhas descoloridas, o cabelo solto e penteado, brilho nos lábios. Ela me levou até seu quarto e disse que me amava por aquela noite, tinha um tom de voz inédito e que nunca mais ouvi.

Esse paraíso de trepadas e declarações durou duas semanas e meia. O clima na agência começou a ficar pesado com demissões e trabalho demais. Lucinha trocou a editora por outra agência e acabou se arrependendo. E chegou uma proposta para passar um ano na França numa especialização acadêmica, depois que um professor havia indicado o nome dela. Lucinha balançou com o convite para morar um ano em Paris estudando. Eu estava cercado de contas para pagar e havia perdido aquela juventude que empurra as responsabilidades pra outro dia em troca de alegrias, mesmo as mais pequenas e cotidianas.

Lucinha mencionou Paris uma, duas, três vezes e eu não fechava uma posição. Protelava, divergia, argumentava. Então veio o ultimato, numa noite em que ambos jantamos em casa. As unhas num azul escuro, o cigarro tenso nos dedos, batom vermelho escuro. Ela iria embora em duas semanas. Não havia motivos para que eu não fosse — nada além de aborrecimentos. Seus olhos não mentiam, resolutos. Mas eu fiz que não e foi assim, eu, um perfeito imbecil. Ela saiu de casa uma semana antes e voltou para o apartamento dos pais. Não corri atrás. Ela mandou torpedos via celular que não respondi. Sandra me ligou dizendo que eu não tinha esse direito de ser tão estúpido. Eu ouvi passivamente.

Então ela embarcou. Correu para o portão de embarque. Ainda comia o último pão de queijo. Usava os óculos que dei de presente nos quatro meses de namoro, um Gucci que eu ainda tinha prestações a pagar. Unhas vermelhas, o cabelo solto, batom combinando com as unhas. Estava de jeans e camiseta branca. Estava até sorridente, por mais que tal sorriso que nunca pude ver me doesse tanto.

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