Mais escuro

Leandro Godinho
outras cousas
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8 min readJun 10, 2017
Ilustração: Nudegrafia

Eu também pensei durante esse tempo todo que te amava, eu disse quando mentir para Olga mais uma vez enfim me pareceu pior que o hábito de jurar aquele amor por não saber admitir que amor não era mais. Olga tinha os olhos fixos nos meus mas não saberia então dizer quem era eu, quem era ela, o que fazíamos ali, e o pior (talvez isso fosse o pior) se alguma vez havia sabido. Os oito anos que vivemos tendo um ao outro como referência foram oito anos que poderiam ser medidos em décadas e naquela minha frase havia talvez o peso de um século de abrasão.

Não era difícil eu pensar que amava aquela mulher apesar de raramente esse meu sentimento corresponder aos fatos e à prática do dia-a-dia, porque na verdade eu amava o grande amor que nunca houve a partir das lembranças que a nudez de Olga me trazia a cada ocasião onde ela se despia para mim. Havia ocasiões em que essa ilusão tomava conta do ambiente e então nos apaixonávamos e voltávamos para uma tarde de cinema, fuga e a cama do quarto que eu alugava na pensão em Belém anos passados. Uma tarde em que eu estava de folga do serviço e ela não tinha aula na faculdade. Ela não podia ficar para dormir e me perguntou se eu iria encontrar com ela no dia seguinte, depois da aula.

E transamos.

Olga envelheceu diante de mim naquela quase década em que transávamos e eu quase não fui capaz de perceber. Só me dei conta que Olga já tinha seus trinta anos quando numa conversa ela mencionou a idade que avançava sobre si, trinta e dois anos — ela estava entrando na fase do desejo materno e de começar a se cansar de mim. Olhei atento o seu rosto e me dei conta de que havia algo ali que não havia nos seus vinte e tantos, algo mais seco e menos róseo, como se a carne maturasse. Depois dessa primeira vez que notei a ação dos anos no corpo da mulher que eu desejava, não consegui mais cessar de procurar novos marcos.

Uma das consequências da passagem do tempo que percebi no corpo de Olga foi que o contorno de seu rosto, especialmente em torno da mandíbula, ficou mais seco, mais árido, o que reforçava o viço dos lábios e o cheiro do suor em dias quentes. A pele parecia mais curtida também, e junto com essa dureza na tez apareceram pequenas manchas que eu só percebia a olho nu, nunca nas fotos. O contraste da pele ressecada perto do colo com os lábios, grossos e corados apesar da boca pequena, era meu detalhe preferido junto com o som da sua voz recitando meu nome e a imagem dos seus pés pequenos dentro das minhas havaianas.

Você precisa entender, eu disse então a seguir, o Leonard Cohen fez mais da vida nos quatro primeiros parágrafos dessa reportagem que estou lendo do que nós dois nesse tempo todo, eu nem lembro mais há quanto tempo a gente segue nessa tentativa, eu casado, você casada. Você precisa entender.

Olga só franziu o cenho e perguntou Leonardo? Quem é esse Leonardo?

Leonard Cohen, um (…)

Vai-te à merda, Leandro. À merda. Seu imbecil. Foda-se quem é esse bosta.

Olga se levantou da mesa onde nós dois tomávamos café naquela manhã e foi ao quarto. Pisava forte e calada. De onde eu sentava podia ver seu reflexo no espelho do quarto e seu corpo sendo coberto pelas roupas que eu tinha devassado na noite passada. Eu já sentia saudades daquele corpo.

Enquanto se vestia, Olga me destilava verdades num tom de voz definitivo, sua voz falando por todo o seu corpo e, naquele momento, todo o seu corpo me queria bem mal. Eu não acredito que pude ser tão trouxa a ponto de acreditar em você, ela dizia, e emendava enquanto fechava o sutiã que nunca mais iria querer olhar para a minha cara, ouvir a minha voz e se pudesse nunca mais iria dizer meu nome em voz alta. Juro que se conhecer um outro Leandro sou capaz de virar a mão no meio da cara do infeliz de ódio, seu bosta! Procurou a calça no chão do quarto e eu, sentado à mesa buscava no espelho grande do armário no quarto o reflexo da nudez que ainda me restava daquele corpo onde havia sido tão homem e pleno e potente. A bunda de Olga era uma das coisas mais sublimes que eu havia vivido e muito por ela quis crer que amava a mulher — a mulher que não hesitava em tomar minha pica à mão e introduzir o falo em seu próprio cu, e uma vez lá dentro, me pedir fundo e quando podia sentava com gosto e me olhava nesse instante pra dizer meu nome, pra dizer que queria gozar em mim, pra me pedir toda a minha porra, pra me jurar amor e morte.

Olga agora havia aprendido a me odiar.

Não é que eu não amasse Olga em definitivo, mas eu a amava bem menos do que eu acreditava. De toda maneira, era um amor medroso e covarde. Ainda em Belém eu já tinha dito a Olga que não ficaria em Belém por mais tempo, pois a cidade e eu não nos entendíamos. Mal havíamos nos conhecido — Olga e Belém — e eu já procurava uma porta de saída. Eu estava lá a trabalho e não pretendia fincar raízes. Eu iria embora assim que pudesse. Não sei se Olga esperava que eu acrescentasse naquela ideia de sair de Belém o anexo “e levar você comigo”, mas havíamos recém nos encontrado e transado e nem era um namoro porque parecíamos mais um casal que se encontrava para sexo, e como a gente gostava muito do sexo, entre uma preliminar e outra lembro de termos ido jantar, ido a bares, de ficar no quarto da pensão que eu alugava vendo um filme na tv e aproveitando o ar-condicionado já incluso na mensalidade. Foi num desses entremeios que eu disse a ela que gostava daquilo — ela e eu juntos, o silêncio da nossa nudez, a mente vazia do mundo e os olhos cheios de nós. Não era um namoro mas parecia bastante, eu sei, você também sabe, até a mãe e a irmã de Olga sabiam.

Foi Olga, no entanto, quem partiu, aprovada numa seleção para uma bolsa de estudos em São Paulo. Eu fiquei mais seis meses em Belém, o suficiente para que ela arrumasse um namorado em São Paulo tão namorado que resolveram morar juntos. Nos falávamos por mensagens de telefone e chats de computador e houve até umas duas cartas escritas de punho (era natal). Primeiro as conversas eram mais corriqueiras, ela me contava da bolsa, da cidade, da saudade dos pais, de coisas pequenas e bem comezinhas. Eu respondia falando de Belém, depois da minha transferência que eu negociava para Belo Horizonte, e logo não havia Belo Horizonte mas havia Curitiba, eu fui para Curitiba, e o apartamento novo em Curitiba, e a cadela da vizinha que não parava de latir no apartamento novo de Curitiba, e as reuniões do condomínio etc.

Olga já morava com seu namorado quando nas conversas a saudade de Belém e da família e dos amigos se transmutou com alguma sutileza em saudade de mim, de nós dois, daquilo tudo que poderia ter sido e nunca mais seria. Surgiu essa questão entre Olga e eu: a gente não teria como construir um futuro porém nenhum dos dois estava disposto a desapegar do passado.

Esse passado ainda presente alimentaria todo o restante. Nem eu e nem ela tomamos a iniciativa de trazer a questão para a voz ou para os teclados onde digitávamos emoticons. O desapego acabou se desvelando em duas pessoas que se buscavam porque queriam viver clandestinamente a impossibilidade de viver juntos.

Entre Curitiba e São Paulo, começamos a nos ver. Sempre havia de minha parte a possibilidade de viajar a trabalho para onde ela morava, a cidade por excelência dos seminários e reuniões envolvendo qualidade de vida, truques motivacionais, feiras de negócio e toda espécie de patavina corporativa que eu deveria assimilar e sintetizar dentro do marketing da firma. Logo Olga passou a ter que viajar para pesquisar e apresentar trabalhos e os quartos de hotéis e motéis passaram a fazer tão parte das nossas lembranças como as salas de embarque e as corridas de táxi.

O canalha que eu gostava tanto de cultivar dentro de mim adorava o jogo que criávamos, pois o homem que vestia todo esse charme morava sozinho em Curitiba e adotar como verdadeiro o amor por Olga — o mesmo amor que quando teve a chance de se assumir como tal e presente não hesitou em anunciar que não era amor a ponto de mudar o plano do homem que não desejava fixar terreno na cidade onde havia encontrado a mulher que amava, sabem? — apresentava a dupla vantagem de ter à mão aquela mulher linda e que fodia tão bem e de bônus ter à mão aquela mulher linda e que fodia tão bem sem o compromisso de ser um parceiro porque Olga já tinha um namorado. Mesmo quando eu arranjei namoradas e Olga terminou seus namoros e iniciou outros e por fim nos casamos, cada um com cada seu, o arranjo inicial perdurou, ainda que já não fizesse sentido a não ser quando estávamos um dentro do outro e, afinal, casamentos atravessam tormentas.

Nos fizemos capazes de machucar um ao outro de tanto desejo em nome das melhores intenções. As passagens a dois que exigiam diálogos com o tempo foram perdendo aquela delicadeza de namoradinhos e ganhando a intimidade das pessoas que passam a se conhecer a fundo. A intimidade resultou em rompimentos ocasionais mas logo sobrevinha o vício e a covardia, e fraquejávamos.

Já vestida, Olga se postou diante de mim que continuei sentado à mesa daquele arremedo de sala no apartamento que eu havia locado em Campinas onde eu passaria os próximos dez dias a trabalho. Olhei para a sua raiva com a expressão vazia, resignado com aquele fim tão indigno de nós mas tão justo com aquele homem que fiz de mim. Eu quis ter pedido desculpas e falar que eu deveria ter tido a coragem de ao menos tentar amá-la com dignidade e verdades, que ela era a mulher mais linda do mundo mesmo naquele instante onde parecia prestes e se apossar da faca de passar manteiga e me degolar feito os mais perigosos sicilianos e que mesmo reconhecendo a beleza, eu não deixaria nunca de ser calhorda e bastante frouxo.

E ser calhorda e frouxo havia me garantido sua nudez, seus orifícios, até suas promessas.

Olga havia me confidenciado mais de uma vez nos últimos anos que não tinha coragem de ter um filho com seu marido porque queria que o pai fosse eu, o que, porra, me enchia de orgulho macho. Apesar de eu responder mais de uma vez que era a declaração de amor mais bonita que eu poderia ouvir (e era), apesar de dispensar a camisinha nessas ocasiões onde passeávamos pelo sonho da criança que poderíamos criar, eu então temia só de pensar na concretude dela grávida, de lidar com nossos divórcios, de lidar com nossas mudanças consequentes, de lidar comigo mesmo. O assunto da criança surgiu naquela manhã diante da mesa do café e eu respondi brusco que não queria criar um filho e então talvez tenha sido derrubado a derradeira sustentação daquela farsa que vivíamos.

Eu também pensei durante esse tempo todo que te amava, eu disse quando mentir para Olga mais uma vez enfim me pareceu pior que o hábito de jurar aquele amor por não saber admitir que amor não era mais.

Ela precisava entender.

Depois que Olga se foi, eu comecei a pensar em tudo que jamais fomos e que, então passei a saber, nunca seríamos e fiquei triste por ela. Mas continuei em silêncio e nada mais disse. Antes de me levantar para o banho, procurei o celular e apaguei da memória o contato dela. As mensagens, todavia, não consegui.

Eu jamais iria entender.

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