O veludo do amor

Leandro Godinho
outras cousas
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4 min readApr 13, 2018

Isadora me lembrava de como era bom poder ser jovem, a despeito das minhas cinco décadas e meia de vida e lembranças que eu procurava esquecer. Ela ainda tinha o instante em cada olhar e cada olhar cintilava feito os colares e brincos com diamantes que eu mandava entregarem com dedicatórias nas minhas ausências, vocês podem imaginar, aquela glória que é ter as certezas e a imortalidade dos vinte e um anos.

Vinte e um anos são uma saudade imensa depois que você não pode mais tê-los e só podemos tê-los durante um ano.

Presenteei Isadora com Louboutins fúcsias só para que ela caminhasse sobre mim. Eu fechava os olhos e gemia com seus passos sobre a inutilidade daquela minha carne, os saltos perfurando omoplatas, mamilos, umbigo, pulmões e rins. Eu fechava os olhos e me sentia forte como jamais pudera ser em toda a minha juventude, quando me dedicava a jejuar várias horas por dia e a perdoar a todos que me ofendiam no pátio do recreio no colégio de padres onde eu descobria minha vocação para seminarista.

Os meus amiguinhos estavam pouco se lixando para os professores e bedéis, estivessem ou não de batina e terço, porque eles estavam mais ocupados descobrindo a puberdade que chegava em ondas – éramos cerca de duzentos alunos que passavam a semana em regime de internato. Mas não eu: eu então acreditava e ao mesmo tempo achava que as dúvidas que me acometiam eram tentações, eram a presença do pecado, eram o cheiro do enxofre. Eles contrabandeavam revistinhas suecas e catálogos de loja de departamento onde as folhas com as ofertas de modelos em roupas íntimas se grudavam de porra e baba, quando não simplesmente tratavam de foder uns aos outros.

Um dia um deles apareceu da folga do final de semana onde passava na casa de um casal de tios com a Playboy da Ana Lima, a Pantera 89. Eu desapareci com a revista assim que pude porque não queria dividir Ana com mais ninguém, pois Ana era o próprio belzebu encarnado e eu me penitenciava diariamente com aquelas folhas impressas. Eu me sentia em pecado pela luxúria e por desapontar meus pais, que gostavam de dizer para o resto da família lendas a respeito dos sinais que eu emitia desde muito moço sobre a vocação para o seminário.

Isadora, os olhos de Isadora, o cheiro do suor de Isadora, a fartura das ancas de Isadora, o breu do cu de Isadora, a voz rouca de Isadora, tudo e cada uma dessas partes afugentava de mim as lembranças do colégio de padres e do ano de 1989, e essa fuga me jogava numa espiral de satisfação ao ouvir o riso de Isadora calçando sapatos que custavam mais que o apartamento onde estávamos. Aquele arremedo de seminarista que teve a vocação torturada por sessões de onanismo temperadas por medos — de ser descoberto pelos padres, de ser descoberto pelos colegas, de ter a revista encontrada — já não acreditava mais nas sagradas escrituras, na santíssima trindade, não guardava sábados e domingos, não se furtava a cobiçar a mulher do próximo.

O exorcismo de Ana Lima foi enfim descoberto ao cabo de três semanas. Eu havia perdido peso e já perdia o horário de algumas aulas, a pele perdia o viço e a minha atenção se dispersava feito nuvens de fumaça. Chamava-se Alcindo o padre que me descobriu vertendo porra e recitando o nome de Ana Lima feito mantra numa véspera de feriado, quando o colégio se esvaziava com os alunos que podiam saindo para passar a data com seus pais. Ele confiscou a revista e então me levou em silêncio para o que eu achava que seria a minha denúncia aos seus superiores, à minha humilhação e desonra.

Porém.

Ele fez um trato comigo diante da porta de seu quarto aberta. Ele oferecia silêncio e o seu pênis carente de toque. Eu providenciaria o veludo do amor.

Alcindo matou Deus em 1989. No seu lugar, plantou um mistério de carne que cheirava a amoníaco e instalou em mim a insônia e uma crise depressiva que terminou com meus pais me tirando do colégio. Padre Alcindo não havia começado comigo e não parou de buscar consolo nos alunos do Santo Antônio após ter me danificado, e tanto precisou dos jovens que acabou sendo descoberto — primeiro um casal de pais, depois a associação de pais de alunos, então o corpo de diretores, e em breve o bispado local e aí a coisa já circulava pela cidade, a lenda de Padre Alcindo era ampliada de boca em boca, as tintas que o pintavam em cores cada vez mais berrantes e mataram Alcindo, já afastado do colégio e da batina, de pancada. Ninguém reclamou seu corpo.

Eu já era outro e fui sendo outro até que outro se tornou a minha pessoa, e minha mãe chorava porque eu me recusava a voltar a lhe fazer companhia nas missas de domingo, e meu pai sofrendo em silêncio porque a lenda do Padre Alcindo talvez explicasse o que havia dentro do filho dele, que agora deixava o cabelo crescer e fumava escondido.

Isadora só apareceu quando eu comecei a me dar conta de que talvez eu já fosse um homem velho. Eu tinha mulher e filhos mas não conseguia me conectar com nenhum deles. Isadora foi para uma cama comigo algumas poucas horas após eu ter sorrido para ela uma primeira vez e desde então parece que sempre foi assim, Isadora me desnudando e me mostrando que talvez eu não seja apenas um homem velho.

Ela calçou os Louboutins pela primeira vez e ficou caminhando de um lado para o outro do quarto nua e silenciosa. Pisava no chão com a mesma precisão com que os assassinos de aluguel desmontam um revólver para limpar e lubrificar suas engrenagens. Então parou de costas pra mim e pude ver, mesmo assim, que sorriu. Eu já nem lembrava mais de ter rugas.

Como era bom.

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