Outro

Leandro Godinho
outras cousas
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4 min readApr 17, 2020

Vitória obviamente beijava outro homem, e ele era alto, loiro, jovem, magro, longos cabelos, o sorriso fácil de quem sabe viver na noite e no favor dos amigos. Ele era tudo o que eu jamais havia sido e, portanto, estava destinado a viver coisas que me seriam negadas, feito a boca de Vitória.

Eu tentava adivinhar os milhões de segredos que flutuavam na proximidade obscena que persistia entre o rosto dela e o do antimim. O quarto elemento do grupo encontrava-se ao lado do casal e dividia a lata de cerveja morna comigo, mais embriagado do que eu e me filando cigarros de báli. Eu achava que não existiam mais cigarros de báli, mas, vejam só, lá estava eu baforando aquele objeto de fedor tão amado por fumantes.

Vitória não viu quando me afastei com aquele último centímetro do cigarro nos lábios rumo ao quarteirão que havia atrás do bar para onde fomos beber em frente depois de todos desistirmos de ficar às margens de uma festa regada à ácido lisérgico & juventude, deixando a lata morna na mão do meu companheiro de naufrágio. Não veria eu abrir a braguilha e solenemente regar aquela árvore plantada em meio à boemia da Cidade Baixa, não saberia jamais como eu fico olhando para as pessoas que são infelizes na vida a ponto de estarem caminhando por aquela deserta via na exata hora em que eu saco o pinto para fora da cueca e mijo como se fosse bonito, como se a minha urina fosse cristal, como se meu meu pinto fosse imenso. Vitória com certeza não veria meu pinto tão cedo, confidenciei a mim mesmo.

Ácido lisérgico & juventude — gostei muito dessa ideia como conceito e vou divagar agora sobre ele, então caso você não esteja interessado nessas coisas pode pular o parágrafo tal e qual eu adiantava as cenas dos diálogos nas VHS dos softporns que alugava na adolescência; Vitória, o antimim e meu novo amigo bêbado estarão lá na outra esquina aguardando por você, fique de buenas — eram dois fatos que a minha vida já não comportava mais com tanta frequência, a ponto de eu reparar quando isso ocorria e eu estava lá no meio. Um amigo havia chegado mais cedo (tinha uma fila imensa pra entrar e tinha até uma gatinha atrás dele que me conhecia, veja isso, que absurdo) no ponto e lograra sucesso em efetivamente adentrar na festa, ao passo em que eu me resignei a ficar ali pela cena, onde aparentemente uma gente ligada a artes cênicas marcava forte presença, ou então poderia uma grande convenção de fãs do Arcade Fire, essas coisas acontecem onde a gente menos se dá conta.

É tão mais fácil sorrir aos vinte anos (e branco e com pais que te sustentem ou tios ou avós, enfim, você deve ter sacado a minha ideia geral). Não importa muito se você está na pindaíba ou se alguma Vitória só aparece com aquele manejo de mãos ou postura vertebral das mulheres resolutas no interior de banheiros ou quartos fechados a chave, no interior de olhos fechados. É a idade de pixar as paredes da cidade, a idade de quebrar vitrines e ter razão, ter certezas e ter sorrisos. Aquela garotada de pé na fila que não andava, virando pelo gargalo aquelas garrafas de pingas ruinzinhas em meio à névoa de nicotina e maconha e perfumes adocicados, nenhum rosto ali acusava a necessidade de trocar a marca do papel higiênico por causa da mensalidade do plano de saúde. Quantos daqueles não estariam reclamando para a seção de cartas dos leitores da Zero Hora dentro de uns sete anos contra a corrupção do governo, as contas de luz, o sinal de celular, o atraso dos aviões. Quantas daquelas meninas não iriam revistar o quarto dos seus futuros filhos e filhotas dali a uns anos para achar uma guimba, uma peteca, uma cartela? Todos tão felizes, alguns certamente não sabiam que suas vidas raramente seriam tão boas como naquela noite, naquela festa com tanta gente e pouquíssimo espaço. Eu precisava tanto daquilo: sorrir, tomar ácido lisérgico e acordar jovem mais uma vez.

Mas voltei para a esquina que me restava, Vitória nos braços de outro me sugerindo comprar outro latão de Polar e acendendo por sua vez um Marlboro. (Mulheres que fumam Marlboro, amigos, mulheres que fumam Marlboro, mulheres que fumam Marlboro.) Vitória, que, mais cedo, havia caminhado comigo até outra esquina erma e tentado fazer xixi entre dois carros estacionados e mal cobertos pela péssima iluminação pública das ruas de Porto Alegre enquanto eu atravessava a rua para batizar um poste e não constranger a menina, afinal, tal e qual William Miller ensina em Quase Famosos, primeiro a gente deveria sair, se encontrar, se beijar e só então um poderia ver o outro mijando, eventualmente. (“I think things are going backwards for me.”) Vitória não conseguiu fazer e me explicou sorrindo de nervosa e eu não entendi o que ela disse, pois me dei conta de que aquela moça havia estado agachada no meio da rua com as calças arriadas, como num poema marginal esquecido, que pode parecer sujinho mas ainda é um poema. E me foquei no sorriso ou nos olhos e perdi a parte de prestar atenção, eu meio bêbado já. Vitória havia desistido, se levantou e voltou para a outra calçada de onde ficou me espiando molhar o poste — e só então me dou conta de que poderia ter ocorrido a ela a curiosidade mórbida de registrar, mesmo à distância, mesmo que no escuro, mesmo que só um pouquinho, como era o pinto que eu segurava em mãos ali. Teria ela feito isso? Jamais saberei.

Entramos todos no bar e compramos as derradeiras cervejas daquela madrugada tão longa. Eu terminei a cerveja, o meu novo amigo bêbado me filou outro báli, a gente riu de coisas que já não me lembro, alguém bocejou, o antimim beijou Vitória e fui embora, solitário, embriagado, esfumaçado, velho. Vitória ficou lá, linda.

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