Tão bonita

Leandro Godinho
outras cousas
Published in
6 min readMay 26, 2016

Daquela vez Tati me olhou sem sorrir. Foi a primeira coisa que reparei comigo mesmo, dentro do eterno monólogo em andamento à revelia do mundo, dentro de mim, que Tati não sorriu e não iria sorrir tão cedo, mesmo estando tão bonita. Eu disse isso em voz alta, foi uma ideia idiota mas e daí, tenho ideias idiotas o tempo todo mesmo, uma a mais, uma a menos.

Você está tão bonita hoje.

Meio que desarmou Tati, essa frase dita tão espontânea, tão cedo. Era de manhã cedo, oito da manhã e nós dois ali naquela sala esperando o café ficar pronto. A gente trabalhava no mesmo escritório, uma espécie de escritório coletivo para nós, burguesinhos que viviam de pagar contas mais do que ganhar dinheiro, um galpão onde vários de nós atendiam telefones, mandavam e-mails, bebiam café e alguns até fumavam — ainda que na varanda. O nome parece chique e tal, co-working. Uau, né. Eu, que trabalhava com redação de textos, já havia sido redator de agência publicitária, agora alugava meus talentos de enumerar as palavras para qualquer um disposto a me pagar por hora de trabalho ou por volume de texto, a combinar. Ela administrava uma espécie de site que abrigava outros sites, um portal, podemos dizer, todos esses sites que o dela abrigava ofereciam serviços relacionados a vida saudável, alimentação orgânica, sessões de massagem, algo assim. Parecia ser bom, Tati sempre tinha uma aparência boa, calma, nunca tinha a visto gritar no telefone, por exemplo. Eu estava tentando trabalhar num ambiente de trabalho para também sair de casa, eu havia sido demitido de quatro empregos em três anos e meio que me deprimi, porque comecei a me achar um imprestável e começo a falar muito de mim e pouco de Tati, mas é pra explicar, dar o contexto — ah, você quer que o contexto se lasque, você quer que eu coma a Tati de uma vez e pare de enrolar aqui, mas é que eu gosto dessa enrolação, é nela que me divirto e se não posso me divertir nem aqui, como é que faço, desculpa, desculpa mesmo. Enfim.

Tanto desarmou Tati, a minha frase, que ela sorriu. Foi bom. Não foi um sorriso que indicasse outra coisa, mas foi um sorriso, mesmo sem dentes, sua boca sorria fechada e ela ajeitou o cabelo, ainda molhado, quase seco. Havia quase quinze dias que não nos falávamos, eu e Tati, porque havia quinze dias que mais do que falar, a gente numa tarde combinou de sair do escritório para comer um sanduíche numa padaria que ficava a dois quarteirões que era famoso, o sanduíche. A gente pode dividir um deles, propus. Ela aceitou porque ela também tinha ido com a minha cara e queria saber o que havia dentro dela. A gente não voltou mais pro escritório naquele dia e acabou indo para um bar perto da padaria, onde ela bebeu mojitos, uma cuba libre e até uma caipirinha de morango. Eu bebia negronis. Dali a gente foi pro meu apartamento e fodeu, fodemos mesmo, nossa, uma foda como há muito tempo aquele quarto não testemunhava, em dado instante Tati gritou e tudo, bateu na minha cara inclusive, esse tipo de foda. Mas foder, todo mundo fode de vez em quando, isso é o de menos. Uma hora nós dois cansamos e resolvemos apenas ficar ali, nus, deitados. Era inesperado porque a gente se via quase cotidianamente e nunca havíamos cogitado chegar aos finalmentes até aquela noite, porque, em algum momento entre sair do escritório para a padaria e o bar nós dois decidimos que o correto para aquele encontro era terminarmos nus, um dentro do outro. Eu acho que reparei de cara no decote que ela vestia no dia, que não era assim um decote assumido, era um decote incidental quase, ou projetado para parecer incidental. Só que eu lembro que a ideia de comer Tati veio quando ela pediu o segundo copo da noite, ela tinha algo que irradiava naquele instante, algo que eu queria provar, deu vontade de beijar aquela mulher mais do que qualquer outra coisa. Eu não sei quando ela viu o que havia visto em mim e nunca soube, não perguntei, fiquei ali calado olhando para o teto e de vez em quando para ela do meu lado. Ela então me perguntou se podia mexer no meu notebook que estava na sala porque havia um email que ela precisava checar e seu celular estava sem bateria. Eu disse que sim, tudo bem, o note estava ligado inclusive e passei a senha pra ela destravar o Windows. Ela agradeceu e foi conferir o email. Não passou nem dois minutos ela voltou para o quarto e se vestiu, não respondeu quando eu perguntei o que se passava, apenas se vestiu e saiu porta afora e nunca mais nos falamos desde então. Quando fui olhar o note vi que ela havia, sabe-se lá como, achado assim depressa a pasta contendo os gifs de pornografia que eu usava para me masturbar.

Mas Tati, desarmada, sorriu e depois fez mais. Disse que eu ficava realmente melhor sem a barba. Sério? Sério, bem melhor. Esse “bem” demorou, sabe? B e m. Ôpa. B E M. Agradeci o elogio, agora eu também desarmado diante dela e subitamente me lembrando de quando fui conversar com uma menina de quem eu gostava na sexta série do colégio, Roberta era o nome dela, Roberta Figueira, tinha cabelos crespos muito loiros, não fabricam mais desses cabelos, mas Roberta os tinha e também tinha a bunda de Roberta, que era algo comovente para os meninos todos da minha turma e para mim em particular. Eu não sabia o que dizer e Roberta mal disfarçava a vontade de rir da minha cara de pateta. Foi Roberta quem disse no final que sabia que eu gostava dela e ela até gostava disso, que eu gostasse dela e aí me deu o meu primeiro beijo, um beijo meio esquisito e com língua demais, dentes no meio, afinal a gente mal tinha doze ou treze anos, se tanto. Mas era Roberta me beijando, caramba! No dia seguinte ela negou tudo e voltei a ser o idiota que sempre havia sido e mais pro final do ano, cada vez mais o idiota que me compremeti a ser, quando descobri a punheta, geralmente fantasiava Roberta de bunda de fora. Encarei o chão e então pedi desculpas, falando mais pra dentro e sem a coragem de olhar nos olhos. Ela perguntou o porquê das desculpas. Eu disse que eram pelo outro dia, aquele dia do meu apartamento, do notebook, da pornografia digital — isso eu achei que ela iria entender por tabela, mencionei apenas aquele dia do apartamento. Ela disse que não tinha muito o que desculpar, ela disse que havia reagido mal e que depois ficou com vergonha da reação e que por isso nunca mais falou comigo, porque era também algo que ela descobriu sem querer e ela nem sabia me explicar como havia aberto a pasta, ela era contra fuçar a intimidade digital das pessoas, ela disse que não tinha o direito. Eu disse que entendia o lado dela.

E aí fiquei sem ter o que dizer após voltar a conversar com ela, mas ao mesmo tempo me senti bem porque a gente ainda tinha outra chance, de conversar de novo e lembrei disso, foi isso que me fez gostar dela a ponto de sugerir o bar, e depois de querer beijar, e depois de querer tirar sua roupa. Aquela conversa primeira durante o sanduíche onde ambos rimos e reparei que ela ficava bonita sorrindo com a boca cheia de pão, que ela era bonita e tudo. Ela poderia enfim me dizer que detestava que eu tivesse pornografia nas minhas intimidades porque ela sabia que a indústria pornô matava mulheres, após transformá-las em objetos descartáveis. Ela poderia me dizer que por um tempo havia trabalhado numa produtora de vídeos e que teve que trabalhar numa boa dúzia de filmes pornográficos e presenciou as meninas aceitando atuar neles a troco de pó e cachaça, ou precisando de cachaça e pó pra encarar aquelas picas das quais não gostavam, não sabiam de onde vinham. E aqueles filmes eram todos feitos para os homens e nossos paus, esses paus que não podem ficar sem gozar, mesmo sozinhos. Ela poderia me dizer enfim que aturava muita coisa num homem, menos a pornografia e mesmo que essa condição inviabilizasse um enorme número de relacionamentos, ela não abria mão daquilo.

Na hora mesmo, o café ficou pronto e a cafeteira apitou. O celular dela também apitou e ela me pediu licença e foi atender do lado de fora do escritório e eu me dei conta de que não havia pego a minha caneca.

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