Tão pouco

Leandro Godinho
outras cousas
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4 min readMar 30, 2016

Eu estava de joelhos no chão do banheiro da casa dos meus pais com o rabo enfiado no meio das pernas e a boca ainda seca quando percebi que seria ruim Taís não estar mais na sala jantando com o resto da família naquele domingo de natal. Foi tudo muito depressa, e tão previsível que quase pude me esquivar do soco que me atingiu a boca, a secura que me gelou o ego e a tontura que me descalibrou a alma. Caralho, ela ainda me disse em voz baixa com os olhos pregados em mim, caralho, repetiu mais para si mesma do que para o mundo e sumiu porta afora, passos firmes, a porta batendo, as pessoas sentadas à mesa perguntando o que havia se passado.

Houve um tempo em que eu podia invadir os banheiros onde Taís estava porque seria bem vindo naqueles espaços. Houve um tempo em que ela me pedia beijos antes de pedir café na xícara ao sentar na mesa para o café, houve um tempo em que ela passeava comigo de mãos dadas vestindo vestidos coloridos e óculos escuros porque era outono e nós estávamos tão bonitos, houve um tempo em que ela não levantava insone de madrugada após sonhar que um incêndio havia queimado o barco onde ela viajava e precisava sair da cama para fumar na varanda do apartamento e olhar para a rua deserta com os sinais trocando do verde para o vermelho como se nada mais houvesse restado.

Eu precisava me recompor, contudo, e a segunda coisa que foi se restabelecendo no meu organismo foi a audição. Primeiro veio a dor. A boca doía porque Taís havia me acertado em cheio, eu havia mordido a língua e sangrava, sangrava a língua, sangrava um lábio, sangrava a lembrança do sorriso levemente tomado pelo vinho que eu ostentava ao invadir o banheiro e que fez que não quando ela me pediu pra sair, quando ela não deixou que eu me aproximasse e finalmente o soco, porque ela não me queria mais e se deu conta que não me queria mais aquele tanto. Agora tudo que eu queria era tão pouco.

Tentei ficar de pé e me encontrar refletido no espelho. Ouvi meu pai chamar meu nome atrás da porta e respondi que estava bem, era tarde demais para a verdade. Estou bem, já vou, duas mentiras. Sorri para o espelho, três mentiras. Abri a pia e enxaguei o rosto, bochechei um tanto da água corrente e quando cuspi saiu com a água suja de sangue um molar e dessa vez ri alto. Ri de verdade. Melhor do que partir corações é partir a cara do sujeito que caga sobre um namoro que vivia de sexo em locais mais ou menos públicos, outonos, cafés, beijos secretos e então você não consegue mais dormir, não consegue mais seguir a dieta, não consegue mais.

Taís não apenas me partiu a cara, ela o fez a metros de distância da minha vó que comia à mesa, da minha mãe que havia insistido para que ela me acompanhasse, da minha sobrinha de quatro anos que não ia entender nada daquilo por um tempo. Eu mesmo não entendia muito bem o que havia acabado de me acontecer mas afinal eu também ainda não havia me dado conta de que a melhor coisa que já havia me acontecido na vida tinha terminado daquela forma brusca, dentro de um banheiro, um soco na boca, dois palavrões.

“Você nunca mais saiu comigo pra dançar, sabia” foi o que ela havia me dito mais cedo, no café da manhã. Eu sequer respondi, apenas olhei pra ela e pensei comigo que era verdade, eu nem tinha mais vontade de sair com ela porque queria que ela se divertisse. Ela não se divertia mais comigo e eu não sabia explicar pra ela o que estava acontecendo com a gente, apenas observava de dentro, com a melhor visão possível, nós dois capotando no meio da estrada diante de uma locomotiva. Ela havia se arrumado para a janta e sorria para todos ali, nervosa a ponto de gaguejar e tensa porque eu já avançava na terceira taça de vinho tinto, ela me segurou a mão com força, como fazia quando eu lhe mordia os bicos dos peitos e mordia do jeito que ela me pedia, mordia macho e firme e malvadão como se fosse arrancar a carne e sair sangue, mordia apenas para lamber no final e ela pedia de novo, morde de novo.

Quando voltei pra mesa as pessoas me olhavam como se eu não estivesse mais ali e então eu me sentei como se fosse natal. O gosto do sangue me descia na garganta e estava difícil mastigar por causa da dor mas eu pensava em Taís, na carne de Taís e aí os dentes atacavam a comida com gosto.

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