Um Crime

Leandro Godinho
outras cousas
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4 min readSep 3, 2020

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Tenho o privilégio de morar num apartamento com varanda para a João Pessoa, de onde enxergo a luz do poste que alcança a copa das árvores da Redenção nesta absoluta madrugada da primavera. Poucos veículos cortam a avenida e mais raras pessoas caminham em suas calçadas, apesar da Cidade Baixa a uma esquina de distância, apesar de um renomado puteiro rua acima, apesar de um posto de gasolina dotado de loja de conveniências 24h logo ali à minha vista. A copa das árvores no parque deserto e aquelas duas lixeiras tão sozinhas dentro daquele halo de luz elétrica me acalmam.

Ao lado daquela esquina iluminada havia o breu e dentro do breu, uma via de mão dupla onde, na escuridão de outras copas de árvores sem a presença da luz e quiçá poesia, meninos, em geral são apenas meninos, você olha e não passam de adolescentes, são magros, estão farrapos, a fumaça nos olhos, a desesperança nos cadarços, meninos portanto, se prostituem. Os carros encostam, descem seus vidros e os meninos surgem daquela noite e oferecem seus paus de meninos a motoristas que não encontram dentro de seus carros e de seus copos e de suas trouxas de pó e de suas famílias de mentira e de suas amantes de ficção a coragem de chupar um pau na privacidade de um quarto, luz acesa, o caralho formoso, o beijo na boca, a convicção de que chupar pau é gostoso, é tão bom, tão real, e todo mundo deveria experimentar uma vez que fosse. Medrosos chupadores de paus de meninos em esquinas desertas e mal fornidas de luz pela prefeitura da cidade são esses motoristas.

Veio esse Logus azul metálico e só por sê-lo, um Logus, já me chamava a atenção. Baixou a velocidade, baixou o farou, baixou a vidraça do motorista, o menino surgiu, de bermudas e havaianas, de camiseta de time de basquetebol norte-americano, de cabelo raspado e pele escura. O menino já trazia o pau exposto ao cliente para agilizar a negociação e o cliente estava apressado, estão sempre com pressa por ali, foi logo com a boca para o pau. Mas algo ali saiu da sintonia e da ética particular da contravenção em andamento. O menino fez menção de se afastar daquela boca e mesmo daqui de cima eu ouvi algo parecido com um grito e julgo ter sido o menino seu enunciador, e aí foi tudo muito rápido, um átimo da noite tão grande que dominava Porto Alegre: o motorista daquele Logus azul-metálico mal se deu conta de que uma arma de fogo tomou o lugar que pertencia a um anônimo pênis em sua mandíbula e disparou três tiros secos.

Pei! Pei! Pei!

O clarão dos disparos ficaria bonito de verdade em película, sem slow motion, stop motion, sem frescuras. Foi hipnótico: menino, resistência, arma, tiros, clarão, fuga e vazio, tudo bem vazio e silencioso. O carro ficou lá ronronando em ponto morto com o motorista e seu rosto certamente explodido, o cérebro espalhado no estofamento, no painel, nos vidros.

Outros carros deram a partida pela rua e logo brotaram na esquina mais dois ou três meninos também, apressados, querendo sair dali, sair da cena, ir embora daquela vida tão fodida de michês. Eu deveria me recolher para dentro do apartamento outra vez, deveria inclusive discar o telefone da polícia e avisar, houve um crime aqui na esquina, mas não o fiz. Era tão bonito aquilo tudo, o eco do silêncio após os tiros, o motor ligado, a presença da morte.

A miséria de ser menino pobre, e tão pobre que não pode dispensar a grana de motoristas medrosos para sustentar sua fome, sustentar seu barato, sustentar sua existência. O sujeito não poder gostar de pau numa boa, à luz do dia, porque é homem, porque deus é contra um homem gostar de pau, seu patrão é contra alguém ser homem e gostar de pau, seu cliente é contra ele ser homem e gostar de pau, seu vizinho é contra ele gostar de pau sendo homem. O descaso da esquina que jaz mal-iluminada bem ao lado do pedaço da praça que recebe luz municipal, talvez pela conveniência de deixar a contravenção permanecer ali, tão perto da boemia da cidade, tão longe da vista de todos. Haveria o crime sem esses fatos todos?

O carro da polícia apareceu, de todo modo, minutos depois, poucos minutos depois, e o primeiro policial a chegar na cena do crime logo sacou um celular do bolso e fotografou pela janela o motorista destruído dentro do veículo. Avisou a seu companheiro dentro da viatura que provavelmente se comunicou com a central. Depois ele desligou o motor do Logus azul-metálico. Não se passou outro minuto antes que a risada de ambos chegasse até a minha varanda.

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