Vincit

Leandro Godinho
outras cousas
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9 min readMar 18, 2015

É bonita, mas está errada.

O quê?

A sua tatuagem. É uma frase famosa.

Eu sei. Eu gosto dela.

Só que é ‘veni, vidi, vici’ que se escreve. Vê-ih-cê-ih. Eu tenho ela num livro que meu pai me deu. Você trocou o vici pelo vincit no final. Entendeu?

Não tem nada errado nela, cara. Errado é você. Se liga.

Esse foi o primeiro diálogo que tive com a Aline, veja só. Ela já começou me dando um fora — errado é você. Foda isso, ouvir desaforo quando você só quer ajudar uma pessoa. Mas eu deixei pra lá, porque, enfim, era a Aline e ela nunca falava comigo, nunca me notava e eu ali sem jeito e sem saber como me aproximar dela. Então teve um dia que ela saiu de férias e, quando voltou, estava essa tatuagem em cima do peito, de uma clavícula a outra, veni, vidi, vincit em letra cursiva estilo skatista, uma variação marginal e alada das letras de convite de casamento. A Aline tinha dessas coisas. Outra vez ela tinha pintado o cabelo de rosa-choque e depois raspado tudo à máquina, tinha argolas no nariz, tinha a língua meio solta também e bebia cerveja em botequim, sentada de perna aberta. Eu morria de medo de chegar junto e ela me achar meio pateta, como se já não me bastasse ser albino.

Peço desculpas caso você seja albino, mas eu sou e falo de cátedra: é uma merda. Eu sei, é feio dizer que ser albino é uma merda, mas é que é uma merda e eu já cansei de ser albino. Ora, porra. Aline, no entanto, desde que entrou no escritório e passou a dividir os seus 90m² comigo e mais outras 7 pessoas, jamais fez qualquer comentário, trocadilho, piada, nada, nadinha, a respeito da minha condição causada pela deficiência do meu organismo em produzir melanina. Dois anos de convivência e nenhuma menção, nenhum gracejo, nenhum comentário — era algo inédito.

Mesmo considerando que ela raramente se dirigia a mim quando não era para me entregar um documento ou o protocolar ‘bom dia’ quando chegávamos juntos e pegávamos o mesmo elevador para o escritório, o celular dela não tocava assim que a porta do elevador se abria, tampouco ela voltava para a rua rapidinho porque havia se lembrado de algo só para não estar perto de mim pelos cinco andares seguintes. Tinha gente que fazia isso, e fazia de novo, como se além de albino eu também fosse cego e totalmente tapado.

Aline me tratava como uma outra pessoa qualquer. Eu quase me esquecia dos meus cabelos quase brancos, dos meus olhos quase azuis, das pesadas lentes de grau que tinha que usar pra ler, do filtro de tela especial que usava no meu monitor, do cheiro de protetor solar que era, na verdade, o meu cheiro. Perto dela, eu voltava a ser apenas o Pedro; para as demais pessoas do escritório e do mundo, eu era aquele cara albino, que eles nunca se cansavam de olhar, espantados com a minha brancura, como se a cor da minha pele ofendesse a seus olhos do mesmo jeito que eles se ofendem quando alguém é preto. Eu amava Aline, calado, secretamente, morrendo de medo, mas amava Aline.

Então, quando ela apareceu com a tatuagem e me dei conta que a tatuagem tinha um errinho, isso me incomodou a tal ponto que falei com ela. Em voz alta. E aí ela me disse que errado era eu, lógico, ela finalmente não conseguiu mais guardar, errado era eu, o albino.

Filha da puta. Linda, mas filha da puta.

====XXXX====

Meu Deus, menino.

Que foi?

A sua piroca é muito grande!

!!??

Eu nunca ia pensar que um albino pudesse ter um pinto desse tamanho! Desculpa!

Eu havia me enganado com Aline, o que só fui descobrir muito depois, por sorte. Aquele errado é você ficou martelando na minha cabeça pelo resto daquele dia, e depois no outro. Sempre que ela passava pela minha baia ou vinha me deixar um documento, a frase ressonava: errado é você.

Então, ao cabo do terceiro dia, na segunda ocasião em que ela passou pela minha mesa, eu parei de revisar a folha de papel à minha frente onde lá estavam algumas minúcias de um contrato de locação de imóvel e a interpelei, interpelei mesmo, chamando a moça pelo seu nome próprio. Ô, Aline — disse com a melhor voz de homem que me sabia, olhando para ela sem medo ou timidez ou qualquer frescura — eu preciso trocar umas ideias com você. Uau. Na hora eu não tremi, apenas disse essa frase no imperativo, sem hesitação, sem poréns, sem vírgulas fora de lugar. Ela respondeu sem espanto que tudo bem, que podia ser depois do expediente, a gente poderia tomar uma cerveja e comer um xis na esquina mesmo. Sim, claro, combinados.

O dia seguiu adiante impávido. Eu revisava minhas minúcias com algumas memórias da infância e da adolescência ao fundo, dentro delas a Carminha, uma ruivinha de sardas e caracóis nos cabelos que frequentou minha classe da sexta até a oitava série. A aluna mais festejada pelos professores, representante de classe, monitora de redação e álgebra. Carminha, um doce.

Um doce de escrotidão.

Àquela altura da adolescência, eu e minhas espinhas já sabíamos o quão dura poderia ser a vida. Eu não era escolhido para os times de futebol, eu passava os recreios debaixo de alguma sombra olhando meus amigos sob o sol, o riso escancarado, os beijos sendo furtados em esconderijos, as peladas com bolas de meia. Eu era um caso à parte, um anexo da juventude, aquele garoto que não podia tomar sol. Eu me sentava com um gibi e ia tomando meu suco de caixinha. Então, num desses recreios, Carminha se sentou ao meu lado e sorriu. Sorriu de verdade. Disse que era pra eu não ficar triste, que cada um de nós todos também tinha algum problema e que eu tinha um problema que era mais visível, mas só isso. O meu pai, por exemplo, eu nunca vejo ele em casa, e quando vejo ele tá sempre fedendo a bebida.

Porra, Carminha. Eu tive pena de você. Eu quis te abraçar.

No dia seguinte, ela não ficou o recreio ao meu lado, mas passou lá pra me dar um sorriso e perguntar algo sobre o teste de biologia. Os meninos da nossa classe viram a gente conversando, a Carminha prestando atenção no que eu dizia, e teve início uma pilhéria juvenil, afinal, se Carminha tinha resolvido conversar comigo, é porque estávamos em vias de assumir um namoro. Carminha viu que esbocei um riso ao ouvir as insinuações. Carminha não gostou do meu sorriso. Te enxerga, Pedro, ela disse. Nunca mais me dirigiu a palavra.

Eu demorei a superar aquilo. O expediente demorou menos e logo eu e Aline estávamos sentados na birosca que havia na esquina do escritório, uma garrafa de Bohemia entre nós e Aline pedindo um xis tudo. Você divide comigo?, ela quis saber. Eu disse que sim. E aí resolvi falar. Tomei um gole e procurei as palavras. Não gostei daquilo que você me disse, sabe? Aline não sabia. Perguntou o que havia dito. Errado é você. Ela fez uma careta de quem não sabia do que se tratava. Eu relembrei a conversa, a tatuagem, vincit. Verdade, ela disse. Você tava certo. E riu. Fazer o quê? Agora vai ficar assim mesmo. Continuava rindo e aí aquela minha firmeza de princípios perdeu o embalo. Ela não tinha jogado na minha cara a minha aparência, ela apenas não gostou que eu metesse aquele bedelho na tatuagem dela.

Mas, olha só, que massa. A gente tá aqui tomando essa cerva, Aline completou. E desandou a falar. Que no escritório só tinha gente tapada, que o Antunes — o dono do escritório — era um escroto, vivia passando cantadas nas secretárias todas e nunca se metia com ela porque tinha medo. E disse que gostava de mim porque eu sempre sabia achar nos contratos quando ela digitava algo errado e consertava sem fazer alarde. Além disso, eu não ficava puxando assunto como se ela não estivesse lá a trabalho. Foi além. Disse finalmente que tinha gostado de me ver sorrindo, é bonito teu sorriso, juro, ela falou, copo na mão, olhos nos olhos.

Dali da mesa do bar, após o xis e cerca de oito garrafas da Bohemia, que acabou e, portanto, nas últimas duas fomos de Itaipava mesmo, entramos num vórtex de lógica que terminou no apartamento que ela dividia com o irmão a quinze minutos dali do centro, nos despindo com ela pedindo pra eu não fazer barulho. Isso até ela bater os olhos, após agarrar com firmeza comovente, na minha piroca.

Mas após o seu particular espanto, Aline se ajoelhou e me levou a um boquete onde eu jamais havia estado. E aí ficou tudo ótimo.

Maravilhoso, aliás.

====XXXX====

Antunes iria morrer antes das cinco da tarde. Estava resolvido. Eu só não sabia direito onde seria a primeira bala, se no meio do coco ou direto no coração, pra explodir logo e matar sem demora. Não me interessava o sofrimento e menos ainda a possibilidade de ele não morrer.

Eu não iria explicar para ele o motivo das balas, porque seriam mais de uma, talvez várias. Ele sabia bem o que havia feito. Suas horas começaram a ser contadas quando Aline passou pela minha baia apressada, rosto baixo, as mãos inseguras, o salto quebrado. Tentei chamar seu nome mas não deu tempo, ela já ia longe e eu ficara para trás. A minha supervisora chamou pelo telefone e eu tentei explicar que, naquele momento, por mais que estivesse trabalhando, havia outras coisas mais urgentes.

Olha, foda-se o que você quer falar comigo agora, Marta, a Aline passou aqui chorando e fugindo de onde estou e preciso correr atrás dela.

Não foi o que disse. Eu apenas gaguejei e depois fiquei mudo e com o telefone em mãos. Ao chegar no meio do caminho entre a minha mesa e a salinha da Marta, larguei a papelada que ela queria conferir no chão e apressei o passo para onde quer que Aline pudesse ter ido.

Me vi no meio da calçada onde tanta gente circulava sem o menor sinal da Aline. Quis chorar, mas não soube como e então voltei para o escritório. A Marta catava os papéis com ofensas a minha pessoa; alguns outros colegas ajudavam a recuperar as folhas no chão; nada do Antunes. Eu apenas recolhi a minha carteira, meu celular e voltei para a rua. Ninguém me chamou de volta. Eu não iria dar atenção se o fizessem.

Aline só voltou a falar comigo na madrugada, quando eu estava sentado na cama, meio bêbado, cheio de ódio do mundo. Ela ligou do celular dela e disse que me devia desculpas (Não, não devia). Ela havia ido até a sala do Antunes para tirar uma dúvida quando percebeu a mão do chefe sorrateira apalpar uma das coxas. Ela se calou e paralisou. A mão começou a subir rumo a pélvis, dentro da saia. Aline não gritou. Antes que a mão alcançasse o sexo, cerrou o punho direito e golpeou como não se sabia capaz uma orelha de Antunes, que sentiu o golpe e perdeu por instantes o controle. Ela enfiou o salto esquerdo nos peitos do chefe, que caiu com a cadeira no chão, e daí saiu dali.

Então Aline disse que estava indo embora. Embora. Não sei pra onde, mas não quero que você venha porque o problema não é seu. Se ela voltasse, disse, me procurava. Era isso. Aline estava indo embora e desligou. Quando liguei de volta, e continuei ligando até o amanhecer e a maldita bateria do meu celular descarregar, o telefone dela não voltou a dar sinal.

Dormi pela manhã e deixei o celular carregando. Quando acordei, passava do meio dia e a bateria do celular já estava plena. Nenhuma ligação perdida, nenhuma mensagem. Foi quando Antunes morreu. Eu saí da cama sabendo disso: Antunes é um homem morto.

Caminhei um par de quadras da minha rua até a saída do bairro, onde funcionava uma espécie de boca de fumo. Não queria maconha, não queria pó, queria um ferro. Um trezoitão. Seis balas no tambor. Eu pago em dinheiro. Precisei falar com mais dois superiores do vapor barato, mas ao cabo a grana comprou a arma e as balas dentro dela. Isso foi ontem.

Hoje, eu saí da cama mais cedo, nove da manhã. Fiz a barba e coloquei a roupa do escritório. Penteei o cabelo. Peguei um táxi e agora estou aqui na portaria, aguardando o elevador. Vai ser tudo muito rápido, quase indolor. Aquele albino que nunca dirigia a palavra a ninguém e com quem a menina tatuada gostava de puxar assunto vai atravessar o escritório e seguir até os fundos, onde fica a sala do chefe, o Antunes. O Antunes não vai desligar o celular onde discute sobre valores, algo pelo qual ele não quer pagar três mil reais.

Não vai pagar.

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