Jesus, o salvador

Harim Britto
outras perspectivas
7 min readDec 27, 2016

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O Deus
Está perto, mas é difícil apreender
E onde existe perigo
Cresce também aquilo que salva
Friedrich Hölderlin, in “Patmos”

Esse hino do poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770–1843) fala sobre um movimento próprio da Natureza, que enquanto se mostra para nós, revela suas múltiplas faces, sendo também a salvação e o perigo, originários de uma mesma fonte. Numa meditação sobre a técnica, o filósofo Martin Heidegger (1889–1976) tomará esses versos para desenvolver a ideia de salvação. Nesse convite à meditação, pede o Heidegger

que reflitamos com solicitude [essa] palavra de Hölderlin. O que significa “salvar”? Costumeiramente achamos que apenas significa: ainda apanhar algo que foi ameaçado pelo declínio para assegurá-lo no curso normal que se manteve até o momento. “Salvar”, porém, diz mais. “Salvar” é: recolher na essência, para assim primeiramente trazer a essência a seu autêntico aparecer.

Nesta reflexão, salvar significa uma restituição aos seu lugar de origem. Pensemos nossa época: Em tempos de intolerância e fanatismo nas ruas e nas redes sociais, com tantos incidentes envolvendo questões religiosas, como é possível lidar com esse perigo e ao mesmo tempo restituir o diálogo, a compreensão e o pensamento crítico para o centro das nossas vidas e assim, salvar-nos? Em outras palavras, como podemos salvação a nossa sociedade? Seguindo os versos do Hölderlin e essa meditação do Heidegger, a resposta estaria naquele a quem estão concentrados boa parte destes discursos: É em Jesus de Nazaré que encontraremos a salvação para esses problemas que estamos enfrentando hoje.

Falar de Jesus de Nazaré não é uma tarefa simples, tampouco trivial: Seu protagonismo para a história do ocidente e a sua importância para várias doutrinas religiosas criaram em torno de sua figura um envoltório no qual as palavras sofrem um processo de ortodoxia: Essa ortodoxia por sua vez cria uma espécie de interdito, transformando os discursos sobre Jesus em numa celebração ao divino, ao sagrado. Em uma das obras mais emblemáticas de Freud, Totem e Tabu (1914), é dito que o

significado de ‘tabu’, como vemos, diverge em dois sentidos contrários. Para nós significa, por um lado, ‘sagrado’, ‘consagrado’, e, por outro, ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. O inverso de ‘tabu’ em polinésio é ‘noa’, que significa ‘comum’ ou ‘geralmente acessível’. Assim, ‘tabu’ traz em si um sentido de algo inabordável, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Nossa acepção de ‘temor sagrado’ muitas vezes pode coincidir em significado com ‘tabu’.*

Mas sabemos da existência de algumas falas que vão de encontro à essa lógica hegemônica, que propuseram ir além da celebração para pensar a figura de Jesus numa perspectiva mais historicizada, ou se preferirem, crítica. Naturalmente, essas falas destoantes foram recebidas com alguma desconfiança, um certo desconforto e não raramente, muito desprezo. Falar em Jesus, essa figura tão importante para a ocidentalidade é sem dúvidas, um grande tabu. Um tabu que considero incontornável, posto que essa centralidade inevitavelmente faz dele um tema recorrente em várias narrativas.

Ciente do tabu, mas também buscando aquela salvação falada pelo Hölderlin, tentemos o esforço de transgredir esse interdito e buscar elementos históricos, antropológicos e filosóficos nos ensinamentos de Jesus para trazer a partir deles, uma maior criticidade para os nossos tempos.

De início, podemos evocar o contexto social e econômico da época da passagem de Jesus de Nazaré. Nascido numa manjedoura e tendo uma vida simples, podemos compreender que Jesus e sua família estavam na mesma condição que a maioria da população da época. Entretanto, é sabido que Jesus desde criança já apresentava sinais que o destacava perante os demais. Lembremos, por exemplo, do episódio em que Jesus foi separado de seus pais pela multidão, sendo reencontrado três dias depois por José e Maria no no templo, sentado em meio aos doutores, dialogando e maravilhando aqueles que lá estavam (Lc 2,46–47). Jesus tinha apenas 12 anos de idade.

De maneira geral, convém lembrar que os ensinos de Jesus representaram uma força de resistência ao poder hegemônico. Em suas mensagens de amor incondicional e de acolhimento ao próximo, encontramos meios para pensar formas não-violentas de contestação das instituições e dos valores vigentes. Ainda sobre esses ensinamentos, vemos neles uma força de acolhimento, simplicidade e generosidade que se devidamente aplicados, certamente geraria um quadro bem diferente do que temos hoje.

Si vis pacem, para bellum

A doutrina cristã é orientada para o Bem (Pe, 3:11–15) e aqueles que a seguem são chamados de pacificadores (Mt, 5:9). Entretanto, existe uma passagem bíblica que narra o próprio Jesus utilizando da força física para expulsar os vendilhões no templo (Jo 2:14–16). E em outra passagem, é sugerido que os obstáculos sejam aniquilados ou removidos (Mt, 18:5–9).

Christ Driving the Money Changers from the Temple, por Rembrandt (1626)

Trazendo para os dias de hoje, é como se aqueles vendilhões que foram anteriormente expulsos se organizaram em grupos e conseguiram reocupar templos. Não satisfeitos, esses mercadores se estruturaram e juntos passaram a construir novos templos. E como se aqueles que fizessem tropeçar as crianças estivessem no comando da situação.

Mas isso não é coisa nova.

Erasmo de Roterdã, por exemplo, na obra O Elogio da Loucura usou como personagem a Razão travestida de Loucura, para apontar e criticar todos os comportamentos viciados da Igreja da época, que não se distanciava tanto dos vendilhões expulsos por Jesus ou ainda, dos corruptores infantis. Estamos falando de uma obra do século XVI.

Imitar Jesus Cristo? É o último dos seus pensamentos. Muito se ofenderiam se lhes dissésseis que obtiveram isto ou mais aquilo deste ou daquele instituto. Julgais que a enorme variedade de sobrenomes e de títulos não deleite muito os seus ouvidos? Há os que se gabam de chamar-se franciscanos, tronco que se subdivide nos seguintes ramos: os reformados, os menores observantes, os mínimos, os capuchinhos; outros se dizem beneditinos; estes se chamam bernardinos e aqueles de Santa Brígida; outros são de Santo Agostinho; estes se denominam guilherminos e aqueles jacobitas, etc. Como se não lhes bastasse o nome de cristãos. Quase todos confiam tanto em certas cerimônias e em certas tradiçõezinhas humanas, que um só paraíso lhes parece um prêmio muito modesto para os seus méritos. No entanto, Jesus Cristo, desprezando todas essas macaquices, só julgará os homens pela caridade, que é o primeiro dos seus mandamentos. (…) Jesus Cristo dirá: — De que país vem essa nova raça de judeus? Pois não dei aos homens uma lei única? Sim, e somente essa eu reconheço como verdadeiramente minha. E esses malandros não dizem sequer uma palavra a respeito? Abertamente e sem parábolas, eu prometi, outrora, a herança do meu Pai, não às túnicas, nem às oraçõezinhas, nem à inédia, mas à observância da caridade. Não, não reconheço pessoas que apreciam demais as suas pretensas obras meritórias e querem parecer mais santas do que eu próprio. Procurem, se quiserem, um céu aparte. Mandem construir um paraíso por aqueles cujas frívolas tradições eles preferiram à santidade dos meus preceitos. — Qual não será a consternação de todos eles, ao ouvirem tão terrível sentença e ao verem que se lhes antepõem os barqueiros e os carroceiros? No entanto, a despeito de tudo isso, são sempre felizes com suas vãs esperanças, o que, em substância, não é senão o efeito da minha bondade para com eles.(…) Os nossos Santíssimos Pais de Cristo e o seus vigários gerais nunca empregam com maior zelo esse espantoso castigo do que no caso daqueles que, à instigação do demônio, tentam diminuir ou danificar o patrimônio de São Pedro. Dizia este bom apóstolo ao seu Mestre: — Deixamos tudo para seguir-te. — Compreendereis que grande sacrifício fez o pobre pescador! Foi a fortuna o que ele conseguiu em virtude dessa renúncia; é por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios, e percebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que nem ao menos poupam os corpos, e, inflamados pelo zelo de Jesus Cristo, desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar as suas razões. Bem vedes que não se pode fazer semelhante guerra sem derramar o sangue cristão. — Mas, que importa? — respondem os papas — Estamos defendendo apostolicamente a causa da Igreja e só deporemos as armas quando tivermos vingado a esposa de Jesus Cristo contra os seus inimigos. — Eu desejaria saber, porém, se haverá para a Igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos. Além disso, assim como a Igreja cristã foi fundada com sangue, confirmada com sangue, dilatada com sangue, assim também os papas a governam com sangue, como se nunca Jesus Cristo tivesse existido para protegê-la e sustentá-la. A guerra é, por natureza, tão cruel, que muito mais conviria às feras do que aos homens; tão insensata que os poetas a atribuíram às fúrias do inferno; tão pestilenta que corrompe todos os costumes; tão iníqua que a fazem melhor perversos ladrões do que homens probos e virtuosos; finalmente, tão ímpia que nenhuma relação possui com Jesus Cristo nem com sua moral.

continua no próximo ciclo natalino…

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