Após 50 anos, ‘Milagre dos Peixes’ segue (muito) relevante para a MPB

Com letras mutiladas pela censura, álbum de Milton Nascimento conseguiu traduzir o espírito de seu tempo

Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas

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Em 1973, um ano depois do sucesso do álbum duplo “Clube da Esquina”, audacioso projeto em parceria com o estreante Lô Borges, Milton Nascimento tinha conquistado passe livre para sua criação artística na gravadora Odeon. Nesse contexto, Bituca resolveu lançar “Milagre dos Peixes”, que viria a se tornar um dos mais marcantes álbuns de sua carreira.

Além de refletir a genialidade do cantor e compositor, o disco traz impressas as marcas do período difícil que o Brasil vivia naquele início dos anos 70: após a instauração do Ato Institucional Número 5 (AI-5), que endureceu ainda mais o regime militar e a censura prévia às obras artísticas, tornava-se cada vez mais difícil sorrir e cantar. O resultado é um trabalho de atmosfera introspectiva, por vezes angustiante, que consegue ser ao mesmo tempo palatável e experimental.

A “tesoura” da censura

Concebido com todo o apoio do diretor de produção da gravadora Odeon, Milton Miranda, o álbum “Milagre dos Peixes” teria letras de Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Ruy Guerra, mas enfrentou problemas com a censura logo antes de ser lançado: das 11 faixas, três foram vetadas pelo regime militar. As letras de “Cadê”, “Os Escravos de Jó” e “Hoje É Dia de El-Rey” foram cortadas praticamente na íntegra.

Diante da implacável “tesoura” dos censores, Milton tomou a ousada decisão de gravar as músicas sem a letra, usando apenas a voz para traduzir o sentimento presente no texto.

Recorte da coluna de Júlio Hungria no Jornal do Brasil, onde foram publicadas as letras censuradas de “Hoje é dia de El Rey” e “Os Escravos de Jó”. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

“Hoje é Dia de El Rey” e “Os Escravos de Jó” tiveram suas letras publicadas no Jornal do Brasil em maio de 1973, na coluna do jornalista Julio Hungria. As canções tinham trechos como “O mundo é pra frente que anda / Mas tudo está como está / Hoje então, e agora / Pior não podia ficar” e “Dizem que está bom / Difícil ver um troço pior / Mas dizem nós estar na melhor” [sic], respectivamente.

Vale ressaltar que cinco das 11 músicas já seriam gravadas sem letra, segundo registra o artigo do pesquisador Luiz Maciel publicado no livro “1973: O Ano Que Reinventou a MPB”. Apenas três canções continuaram intactas: a faixa-título, parceria com Fernando Brant; “Pablo”, com letra de Ronaldo Bastos; e “Sacramento”, letra do próprio Milton para uma melodia de Nelson Ângelo.

A música acima de tudo

O LP em sua edição original, com projeto gráfico arrojado. Reprodução — Brazilcult

O disco, que quase se chamou “A Última Sessão de Música” — título de uma das faixas -, foi finalmente lançado nos últimos dias de agosto de 1973. A capa do LP trazia um projeto gráfico arrojado, com a estrutura de um pôster com três dobraduras. Dentro da capa, vinha um disco de 12 polegadas com oito faixas, um compacto com outras três músicas e cinco folhas coloridas com as letras e fichas técnicas detalhadas das gravações.

Constam na ficha técnica do álbum músicos como Wagner Tiso, Paulo Moura, Naná Vasconcelos e Nelson Ângelo. Milton também recebe as participações vocais de Clementina de Jesus, em “Os Escravos de Jó”; e Nico Borges, irmão de Márcio e Lô, na faixa “Pablo”.

Nota do jornal Tribuna da Imprensa, em 1º de junho de 1973, noticiando a mudança de nome do álbum…
…e na edição do dia seguinte, o retorno ao nome original. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

O álbum é aberto pela censurada “Os Escravos de Jó” (Milton Nascimento e Fernando Brant), na qual ouvimos apenas apenas os versos “Saio do trabalho, ê / Volto para casa, ê / Nem lembro de canseira maior / Em tudo é o mesmo suor”. Uma curiosidade é que a melodia de “Os Escravos de Jó” já havia sido usada em outra música registrada por Milton: “O Homem da Sucursal”, de 1970, que aparece como faixa bônus no relançamento do álbum “Milton” em CD. A letra também é de Fernando Brant.

E não para por aí: quatro anos após o lançamento de “Milagre dos Peixes”, “Os Escravos de Jó” apareceu com (mais uma) nova letra de Brant e um título diferente: “Caxangá”. A faixa está presente no álbum “Elis”, lançado por Elis Regina em 1977.

Voltando ao álbum de Milton Nascimento, a segunda faixa é “Carlos, Lúcia, Chico e Tiago” (Nascimento). Originalmente pensada como um tema sem letra, a música tem o subtítulo “Eu Sou Uma Preta Velha Aqui Sentada Ao Sol” e conta com os vocais de Bituca, que também toca piano. Ao longo dos pouco mais de seis minutos da gravação, é possível sentir claramente o clima de tensão, angústia e introspecção.

A terceira música é a sublime faixa-título (Nascimento/Brant), que conta com a participação de uma orquestra de cordas. Logo em seguida, fechando o lado A do disco, outra canção sem letra: “A Chamada” (Nascimento), um dos maiores exemplos da capacidade que Bituca tem de exprimir sensações apenas por meio da voz. Nesse caso, os efeitos vocais do coro e as falas dão o tom exato da agonia, com frases como “eu tô cansado, me solta”.

O lado B de “Milagre dos Peixes” é aberto pela animada “Pablo Nº2” (Nascimento/Ronaldo Bastos), que ganhou o subtítulo “Festa”. Mas o respiro dura pouco: logo em seguida vem “Tema dos Deuses” (Nascimento). A música, que fez parte do filme “Os Deuses e Os Mortos”, de Ruy Guerra, já havia sido registrada pelo grupo Som Imaginário — banda de apoio de Bituca — em seu álbum de estreia, em 1970. O próprio artista participa da gravação fazendo vocalises. Em ambos os registros, fica clara a vocação épica do tema.

O estado de tensão que permeia o disco chega a seu ápice em “Hoje É Dia de El-Rey” (Nascimento/Márcio Borges), mais uma faixa que teve a letra mutilada pela censura. A canção, um diálogo entre pai e filho, originalmente seria gravada por Milton com a participação de Dorival Caymmi como a voz do pai. No registro presente no disco após as intervenções da censura, esse papel foi feito por Sirlan, que canta apenas os versos “Filho meu” e “Meu filho”. Vale dizer que a própria composição é uma homenagem a Caymmi, já que se inspira na “Suíte dos Pescadores”.

Em seu livro “Os Sonhos Não Envelhecem: Histórias do Clube da Esquina”, Márcio Borges fala sobre a música.

“Nossa suíte falava dos conflitos entre duas mentalidades, duas gerações, pai e filho dialogando num clima de alegorias pesadas e atmosfera musical densa e expressionista.
Para nosso desespero, ao submetermos a letra à censura, ela não só foi vetada na íntegra, como ainda Bituca foi chamado para depor no DOPS. (…) Nossa ideia era convidar Caymmi para cantar as partes do pai. Bituca chegou a fazê-lo. Tremíamos de emoção só de pensar naquela vozeirão soltando: ‘… Filho meu…’ Agora a música estava arriscada a ficar fora do disco. Só mesmo a teimosia e a raiva de Bituca fizeram com que ela permanecesse no repertório:
- Vou gravar de qualquer jeito. Vou botar no som tudo o que eles tiraram na letra. Eles vão ver comigo…”

Fechando o LP, o melancólico tema instrumental “A Última Sessão de Música” (Nascimento) deixa suspenso no ar o clima das faixas anteriores. Mas não para por aí: três outras músicas estão no compacto que acompanha o disco.

“Cadê”, que teve sua letra vetada pela censura do regime militar, tem uma ambiência jazzística-roqueira. A canção, parceria de Bituca com o cineasta moçambicano Ruy Guerra, inclui trechos como “E a tua esperança, Branca de Neve/ Cadê, quem levou?” e “Meu príncipe assustado/ Meu príncipe queimado/ Corta a noite escura dessa floresta/ Mata o fogo do dragão”. A música acabou proibida por “ironia política e contestação”, de acordo com o parecer da censora Marina de Almeida Brum Duarte.

Documento original da censura, assinado pela censora Marina de Almeida Brum Duarte. Fonte: Arquivo Nacional

A composição só viria a ser gravada com a letra original em 1978, por Gal Costa, no álbum “Água Viva”. Antes disso, porém, a música ganhou uma gravação do próprio Milton com letra em inglês criada por Matthew Moore, no LP “Milton”, lançado em 1976 no mercado internacional.

O lado B do compacto que complementa o LP “Milagre dos Peixes” traz duas faixas: a já citada “Sacramento”, que escapou dos cortes da censura, e o primeiro movimento de “Pablo”, com a voz de Nico Borges. Para mim, pessoalmente, esta última é uma das gravações mais belas e delicadas que a MPB já produziu. O timbre infantil e agudo de Nico pode até soar “desagradável” ou desafinado à primeira audição, mas casa perfeitamente com a mensagem da faixa, feita em homenagem ao filho então recém-nascido de Milton.

Aclamado desde sempre

“Milagre dos Peixes” hoje é reconhecido como um dos maiores álbuns da Música Popular Brasileira, sempre lembrado pelo refinamento musical, pela criatividade e pela atitude corajosa de seu criador ao não descartar totalmente as canções vetadas pela censura. O LP aparece em 63º lugar na lista feita em 2007 pela versão brasileira da revista Rolling Stone com os 100 maiores discos nacionais de todos os tempos. Recentemente, em 2022, o álbum figurou na 107ª posição da lista “Os 500 Maiores Álbuns Brasileiros de Todos os Tempos”, elaborada por 162 especialistas em música com a coordenação do jornalista Ricardo Alexandre.

O reconhecimento, no entanto, não é novidade: diferentemente de outros álbuns de seu tempo, como “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, “Milagre dos Peixes” teve uma recepção positiva da crítica desde a época do seu lançamento. Em meio a eventuais comentários sobre o “hermetismo” do álbum praticamente instrumental, os jornalistas especializados derramaram elogios ao conjunto de faixas.

“O resultado deste trabalho é simplesmente maravilhoso: com a voz em falsete, ou natural, riscando as linhas melódicas — sobre as quais às vezes uma frase esparsa do texto permitido se faz ouvir — ele cria um clima tenso, auxiliado sempre pela eficiência dos arranjos ou a criatividade dos músicos que participam da cena”, escreveu Júlio Hungria no Jornal do Brasil de 25 de setembro de 1973.

Sérgio Braga, no jornal Diário de Pernambuco, teve opinião semelhante: “Milton é novamente o responsável por um dos melhores lançamentos do ano e, com toda a sua timidez mineira, tornou-se a influência maior da música popular brasileira nos dias atuais”, escreveu na edição de 23 de setembro. No fim de 1973, “Milagre dos Peixes” seria citado entre os grandes trabalhos lançados naquele ano, ao lado de “Matita Perê”, de Tom Jobim.

Onde ouvir esse milagre?

Além das 16 edições físicas que ganhou desde seu lançamento — em vinil, CD e cassete -, “Milagre dos Peixes” está disponível nas plataformas digitais. No entanto, vale ter atenção: as faixas aparecem com os títulos trocados nos serviços de streaming. A música nomeada como “Cadê” é, na verdade, “Pablo Nº2”; e todas as faixas seguintes receberam os títulos de suas sucessoras na ordem do disco: “Tema dos Deuses” nomeada como “Pablo Nº2”, “Hoje É Dia de El-Rey” chamada de “Tema dos Deuses” e assim sucessivamente. Apenas as quatro primeiras faixas estão com seus nomes corretos.

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