Cosmic Curves: a história da terráquea cujo crime foi amar

Pouco citado entre as obras-primas de sua época, álbum de Dee D. Jackson é uma visceral ópera disco futurista

Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas
13 min readApr 9, 2019

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“Estamos no século XXI. Uma jovem garota desiludida por seu amor/amante automático decide pegar o voo incandescente para sair da Terra e desbravar o espaço em busca de um tipo de amor, de cuja existência ela apenas ouviu falar. Ela alcança a galáxia do amor e é lá que encontra o que procurava. O homem-meteoro lhe deixa completamente apaixonada e deslumbrada, tão envolvida que chega a se sentir a própria Vênus, a deusa do amor. Mas o amor é proibido no Universo e a polícia galáctica é enviada para prendê-la e levá-la a julgamento. Ao se apresentar à corte, sua única defesa é que ela é a garota cósmica com curvas cósmicas, mas o júri é implacável e ela é banida eternamente para os buracos negros. Enquanto está caindo no espaço, ela mais uma vez defende a si mesma e reafirma que as pessoas da galáxia têm o direito de amar”.

O parágrafo acima parece a sinopse de uma ópera ou até mesmo de um musical, mas é apenas o texto de apresentação impresso na contracapa do álbum “Cosmic Curves”, de Dee D. Jackson, lançado em 1978, em tradução livre. Não é coincidência, porém, que a narrativa pareça tão teatral. Em seu álbum de estreia, a artista sintetizou experiências passadas, influências e aspirações em meio a um contexto muito interessante, do surgimento da música eletrônica experimental e da disco music de nomes como Giorgio Moroder e Donna Summer.

Nascida em 1954, filha de pai pianista e mãe cantora, Deirdre Elaine Cozier era uma jovem musicista britânica que se mudou para a Alemanha após “anos de formação dedicados a escutar King Crimson, Pink Floyd, Joni Mitchell, Cole Porter e musicais como West Side Story”, conforme registra o blog We Are The Mutants. Naquele momento, o país era o grande celeiro das invenções musicais eletrônicas: basta lembrar que o Kraftwerk veio de lá.

“Dee D. Jackson, A Taste of Honey e The Commodores: Três Grandes Conjuntos” — Revista Música, março de 1979

Mas a mudança para a Alemanha, que deu o pontapé inicial para que Deirdre se tornasse Dee D. Jackson, começa com um fato não muito agradável, segundo a própria relatou em entrevista ao blog Dangerous Minds. Aos 19 anos, ela se casou com um músico que fugiu com seus pertences três semanas depois. Irritada, foi atrás do marido para recuperar as próprias coisas, seguindo a pista da proximidade dele com o músico israelita Abi Ofarim, que morava em Munique, na Alemanha. Durante suas andanças em busca de Ofarim, Deirdre acabou indo parar no Union Studios, onde encontrou vários músicos ingleses expatriados. Entre eles, estava o baixista Gary Unwin, que viria a ser peça-chave no início da sua carreira.

“Eu meio que entrei, sentei e todos os olhos estavam sobre mim (eu também era um tanto bonita). Me apresentei, toda a timidez sumiu junto com minhas piscadelas, e eles ficaram todos muito curiosos enquanto eu contava minhas histórias de aflição, e em seguida veio a pergunta, o que eu fazia da vida? Dizer a eles que eu era uma cantora e compositora parecia a coisa certa, eu tinha escrito poucas músicas em minha vida e tinha cantado com algumas bandas, e eu realmente tocava violão e um pouco de piano, então, não era exatamente uma grande lorota, mas definitivamente não era o que eu pensava ser minha vocação para a vida”.
— Dee D. Jackson em entrevista ao blog Dangerous Minds (tradução livre)

Diário de Pernambuco, 18 set 1978

A partir daí, ela começou a cantar em bares e escrever músicas com Unwin, um dos expoentes do chamado “Som de Munique”, que daria origem, junto a outras influências, à disco music. Do sucesso modesto do primeiro single, “Man of a Man”, Dee D. Jackson foi catapultada para o estrelato com o lançamento de “Automatic Lover”, a triste história da jovem decepcionada com seu amante quase robótico de tão distante. Daí começa a nascer “Cosmic Curves”, o álbum, com sua ambientação sci-fi inspirada tanto pelo fenômeno “Star Wars” e pelo advento da temática futurista em meio ao avanço tecnológico, quanto pelas vivências e frustrações amorosas da própria artista. Como Jackson declarou ao We Are The Mutants, trata-se de um álbum “muito autobiográfico”. Para a artista, escrever músicas era “quase uma forma de autoanálise, uma forma de exorcizar dores que cresciam e [criar] um espaço secreto e acolhedor ao longo do processo”.

Desbravando a galáxia do amor

Produzido por Gary e sua esposa Patty Unwin, com participação de Jackson nas letras, o álbum é definido pela artista como um musical roqueiro, eletrônico e espacial, “uma combinação dos compositores com paixão por contar uma história e do meu amor por me vestir com figurinos teatrais”. De fato, “Cosmic Curves” tem um aspecto teatral e dramático muito forte, que vai além da caracterização futurista de Jackson em apresentações ao vivo ao lado de seu “Automatic Lover”.

As oito faixas encadeadas — com uma breve pausa apenas da quarta para a quinta, já que estamos falando de uma obra lançada em LP e era necessário virar o lado — contam, em riqueza de detalhes e ambientação sonora, a trajetória de uma jovem que resolve, após uma decepção amorosa, desbravar o espaço e viver novas emoções. Para além de um conto futurista ambientado no ainda distante século XXI, a linha narrativa proposta pelo disco também podia ser lida como uma metáfora sobre o amor que, não tão surpreendentemente assim, permanece atual.

“Meu sonho era, realmente, atuar em musicais, então acho que o drama em ‘Cosmic Curves’ vem daí”.
— Dee D. Jackson, em entrevista ao blog We Are The Mutants (tradução livre)

“Automatic Lover” (Gary Unwin e Patty Unwin), faixa de abertura do álbum e primeiro single que chegou arrasando quarteirões, narra a frustração da jovem protagonista com o seu “amante automático”, que pode perfeitamente ser qualquer pessoa emocionalmente distante do seu parceiro, e é pontuada por uma voz robótica que diz “I am your automatic lover” (“eu sou seu amante automático”). Nas apresentações ao vivo, o conceito era aplicado literalmente na figura de um “robô” enquanto companheiro de cena. Curiosamente, “Automatic Lover” não é creditada a Dee D. Jackson (ou, melhor dizendo, a Deirdre), mas ela garante que teve participação na composição.

“Na primavera de 1978, o primeiro single foi lançado, e vendeu demais no Midem*, e eu recebi uma cópia de ‘Automatic Lover’. Eu estava sentada no carro com Patty (Unwin) e lembro de ter olhado os créditos e não ter visto o meu nome creditado como autora, e uma tristeza esmagadora me abateu — eu escrevi o refrão, que é uma das partes mais fortes da música. Eu a confrontei e ela respondeu ‘eu pensei que você fosse dizer isso, mas o lado B é seu’. Eu fiquei sem palavras, sim, eu tinha o crédito da faixa do lado B porque eu a escrevi também! Me senti devastada por ter sido traída mesmo que estivesse apenas começando, e claro que nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo depois disso”.

— Dee D. Jackson, em entrevista ao blog Dangerous Minds (tradução livre)

*Marché International du Disque et de l’Édition Musicale, maior encontro mundial de empresas ligadas à música

Décadas depois, Dee D. Jackson ganhou novamente os direitos sobre sua composição, embora tenha ficado sem receber nada durante os anos de maior sucesso da música.

Enfim, sigamos com a saga da nossa heroína amante incompreendida. Como diz o texto de apresentação do disco, na faixa seguinte, “Red Flight” (Gary Unwin, Patty Unwin e Deirdre Cozier), ela resolve “meter o louco”, largar os humanos para trás e viver novas experiências, sem deixar de lamentar o fato de que antigamente “amor era o que você dava a um homem, até que o robô tomou o lugar dele”. A guitarra e o baixo se destacam em meio ao arranjo space disco, trazendo certa atitude “raivosa” para o desabafo. Eis que, a seguir, ela encontra o que tanto buscava, em “Galaxy of Love” (Gary Unwin, Patty Unwin e Deirdre Cozier). A personagem se vê em um clima de sonho e encantamento reforçado pela atmosfera sonora baseada nos teclados e coros etéreos. Finalmente ela achou a intensidade e a profundidade que dariam sentido à sua vida. Mas essa sensação de plenitude não estaria completa sem um amor arrebatador — tão arrebatador como um meteoro.

Em “Meteor Man” (Gary Unwin, Patty Unwin e Deirdre Cozier), a heroína conta a história de como ela não apenas se apaixonou por um ser admirável, como também do quanto ele lhe transformou enquanto pessoa. Mais do que isso, a letra ainda narra a fugacidade — meteórica, para a surpresa de ninguém — do encontro dos dois e de como ela teve que deixá-lo ir. Quase uma crônica sobre o desapego. Mas engana-se quem pensa que isso lhe desanimou em meio às suas aventuras, pelo contrário. Ela se sente tão renovada, tão dona de si, tão plena em sua intensidade, que passa a crer que é a própria deusa do amor. É em “Venus, the Goddess of Love” (Gary Unwin, Patty Unwin, Deirdre Cozier e Kaschu) que ela vivencia essa fantasia. A faixa que abre o lado B do álbum é um disco-rock com solos de guitarra e baixo bem proeminente, cuja letra é interpretada de modo tão teatral que dá para imaginar a própria Dee D. Jackson no palco incorporando a Vênus espacial.

Mas é claro que esse negócio de sair por aí amando demais, se envolvendo com homens-meteoro de maneira intensa e desapegada e se achando uma deusa espacial não iria sair muito barato. Em “Galaxy Police” (Gary Unwin), nossa heroína se vê perseguida pela polícia porque no espaço é proibido amar. É a partir dessa faixa que o disco toma contornos cada vez mais teatrais, ou até mesmo cinematográficos, já que os agentes da polícia do espaço ganham voz e passam informações um para o outro via rádio. Toda a caça à terráquea ousada é narrada em detalhes e em estéreo, sobre a base rítmica que sofre pouca ou nenhuma variação ao longo da música.

O desenrolar da ação vai dar, é claro, no julgamento da criminosa, que acontece na faixa-título, “Cosmic Curves” (Gary Unwin, Deirdre Cozier e Kaschu). Acusada de traição contra os poderes universais, ela tem como testemunhas de acusação o próprio ex-amante robótico e o homem-meteoro que deixou de funcionar bem após descobrir que corresponde ao amor dela. Como se não bastasse, a verdadeira Vênus, anunciada com pompa e circunstância, aparece, ultrajadíssima por uma reles terráquea ter tentado roubar seu protagonismo. Em sua defesa, a jovem só consegue cantar, em um refrão cheio de atitude roqueira, que é a “garota cósmica com curvas cósmicas”, ou “não tenho culpa se eu sou a gostosona”. Brincadeiras à parte, a penúltima faixa do álbum apresenta o ápice da teatralidade que é uma de suas marcas registradas.

Como ser a “garota cósmica” não adianta muita coisa, a Suprema Corte Espacial decide que nossa heroína incompreendida deve ser banida de volta para a Terra através de um buraco negro. É dessa forma singela e tristonha que termina a saga, na última faixa, a balada “Falling into Space” (Gary Unwin, Patty Unwin e Deirdre Cozier). Ela lamenta ter cometido o crime de amar, se despede de todos que conheceu em sua aventura e volta para a sua vidinha ordinária — ou não, já que isso não fica 100% claro na letra. Ufa. É ou não é muita história para um álbum de disco music?

Diante de toda essa descrição, dá para perceber que “Cosmic Curves” não é apenas uma ópera disco-rock de ficção científica: também é uma narrativa de ascensão e queda de uma mulher que só queria viver uma relação amorosa significativa, uma conexão profunda, e termina sendo julgada por tentar sair da superficialidade. Dá para arriscar até uma leitura nova da obra, quarenta anos depois, e dizer que o álbum consegue traduzir boa parte das questões presentes nos chamados “relacionamentos líquidos” de hoje, como o distanciamento emocional, a fugacidade, o medo de se entregar e os julgamentos sofridos quando se decide pular no abismo. Questões que possivelmente já eram assunto naquele momento, já que se relacionar nunca foi fácil.

Quando Dee D. Jackson virou estrela do Chacrinha e do Imperial (ou quase isso)

Embalado pelo megahit que foi “Automatic Lover”, o disco “Cosmic Curves” fez sucesso em todo o mundo, mas é no Brasil que esse êxito ganha contornos especialmente interessantes.

A década de 1970 foi um período peculiar para a indústria cultural brasileira. Estamos falando de um tempo em que a televisão se expandia cada vez mais, como parte do projeto de poder do regime militar, e as gravadoras buscavam novas fatias de mercado. Este último fenômeno acontecia através de maneiras por vezes um tanto esdrúxulas, como discos de covers e artistas brasileiros que eram apresentados como estrangeiros por cantarem em inglês (André Barcinski conta essa história em uma matéria disponível para assinantes na revista piauí). Também estamos falando de uma época em que o acesso à informação era infinitamente mais limitado. Ou seja, tornava-se extremamente fácil você arranjar um sósia de um cantor de sucesso e colocá-lo para se apresentar em um programa de televisão como se fosse o próprio artista.

Mas ninguém faria algo do tipo, certo? Errado. Carlos Imperial fez. (Essa é uma sequência de frases que vai se repetir em muitos outros momentos da história da música e da indústria cultural brasileira nos anos 1960 e 1970.) Pelo menos, assim diz uma das versões da história de como a bailarina e professora de ioga Regina Shakti se tornou a Dee D. Jackson brasileira, ou Gee G. Jackson, ou ainda D. Dee Jackson, para tentar evitar problemas com direitos autorais. Em “Teletema — Volume I: 1964 a 1989”, Guilherme Bryan e Vincent Villari afirmam que Shakti foi instruída por Imperial a fazer performances como a artista inglesa. A narrativa é endossada pela biografia do apresentador e produtor, “Dez, Nota Dez! Eu sou Carlos Imperial”, de Denilson Monteiro.

Já Claudia Assef e Alexandre de Melo trazem outra versão, no livro “Ondas Tropicais—biografia da primeira DJ do Brasil: Sonia Abreu”. Trabalhando como divulgadora na gravadora RGE Fermata, que lançou o álbum no Brasil, Sonia Abreu teria recrutado a dançarina para a missão de promover o disco na televisão. Tudo começou quando a DJ encontrou o compacto de “Automatic Lover” em meio ao catálogo da gravadora e farejou de longe o sucesso. “Aí eu entrei na sala, andei até um corredor como se estivesse sendo teleguiada. Parei de frente para uma estante encostada na parede e puxei um compacto que tinha na capa uma mulher lindíssima e um robô. Aquilo era do caralho! Um ser feminino vindo do espaço, vestido de prateado e um robozinho maluquete acompanhando. Putz, meu, na hora eu pensei: ‘Parece o Giorgio Moroder. Já sei como isso pode dar um caldo aqui’”, descreve Sonia, em depoimento aos autores.

Intuitivamente, ela propôs ao dono da gravadora que o álbum “Cosmic Curves” fosse promovido através de uma paródia televisiva. Regina Shakti aceitou a missão de ser Dee D. Jackson na TV e Sonia foi a uma funilaria mecânica atrás de peças para fazer o robô que a acompanharia.

“Regina começou a se apresentar nos programas de TV em todo o Brasil (com destaque para O Cassino do Chacrinha e A Discoteca do Carlos Imperial) como se fosse a própria Dee D. Jackson ao lado do robô, às vezes interpretado pelo namorado, às vezes por Sônia. Para evitar problemas com direitos autorais, Regina Shakti se apresentava com o nome ligeiramente alterado para D. Dee Jackson em vez de Dee D. Jackson. Ninguém notou a diferença”. (ASSEF e MELO, 2017)

Basta fazer uma pesquisa em jornais da época para perceber que Shakti era tratada como se fosse a própria Dee D. Jackson, o que lhe rendeu muita fama e dinheiro. Hoje, ela atua como uma respeitada professora de ioga.

Jornal do Brasil, janeiro de 1979
Ilustrada — Folha de S. Paulo, 17 fev 1979 (vale notar o “cantora internacional”)
Jornal dos Sports, 20 jan 1979 (o único que cita o nome real da Dee D. Jackson brasileira)

Segundo o blog Dangerous Minds, a Dee D. Jackson original só soube disso décadas depois. Já a gravadora Jupiter Records tinha conhecimento do trabalho de Shakti, mas não se opôs — afinal, os discos vendiam como água no Brasil graças à “Regina do Robô”.

Isso é real ou apenas um sonho?

Depois do sucesso retumbante no Brasil e no mundo, Dee D. Jackson lançou “Thunder and Lightning” em 1980. O LP foi bem recebido pela crítica, mas sem o mesmo retorno do público. Mais tarde, ela se fixou na Itália, onde abriu a própria gravadora.

O fato é que mesmo tendo sido, na prática, uma espécie de one-album wonder, Deirdre Cozier conseguiu firmar seu nome na história com “Cosmic Curves”, ainda que o disco não receba metade da atenção que merece. De uma tacada só, o álbum consegue trazer influências do universo da ficção científica e dos musicais, sem deixar de ser palatável enquanto produto da indústria pop e disco, e ainda tratar, de forma muito sensível, sobre uma temática sentimental, de autodescoberta e de crescimento pessoal. Consegue ser, ao mesmo tempo, produto do seu tempo e refletir a subjetividade de sua criadora. Em resumo, é uma obra de arte subestimada.

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