Elis pela lente dos homens

Os vários erros de representação cometidos pelo documentário “Elis & Tom”, na visão de uma mulher, fã e jornalista

Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas

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Anunciado com toda a pompa, o documentário “Elis & Tom: Só Tinha de Ser Com Você”, de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, tinha tudo para ser o refresco que os fãs de Elis Regina pediram por tanto tempo: as imagens originais da gravação do lendário disco de 1974, finalmente resgatadas e remasterizadas em 4K, costuradas por depoimentos de pessoas que estavam presentes e/ou fizeram parte do projeto, de alguma forma. Se, por um lado, é exatamente isso que o filme entrega, por outro há a repetição de erros imperdoáveis já observados na cinebiografia “Elis” (2016), de Hugo Prata, e que não escapam a um olhar atento.

Em ambos os longas, existe a insistência em colocar Elis em um lugar passivo, de sujeição aos homens que lhe cercavam, como se ela jamais pudesse ter sido o que foi se não fossem eles. Existe a glorificação exagerada das figuras masculinas que atravessaram o caminho da artista, enquanto seus feitos, seus posicionamentos e os motivos de suas decisões ficam em segundo plano. E existe o pecado mais grave de todos: a representação de Elis como uma figura louca, instável, inconsequente, deprimida e suicida, sem qualquer nuance que a traga como a pessoa complexa que foi. O olhar masculino é capaz de desumanizar e coisificar até mesmo a maior cantora do Brasil.

Cartaz do documentário. Foto: Reprodução

A narrativa enviesada já se apresenta logo nos primeiros minutos do documentário, com a tentativa de reconstruir os caminhos pelos quais Tom e Elis passaram em suas carreiras até chegarem àquele ponto em que se encontraram para gravar o álbum. A trajetória do “maestro soberano” é retratada como vitoriosa pelo fato de ele ter sido um dos artífices da Bossa Nova e alcançado reconhecimento e aclamação internacional, chegando a ser gravado por Frank Sinatra.

Quando o foco recai sobre Elis, todo o fio narrativo se resume à ausência de uma carreira internacional consistente, apesar de ela ter feito diversos trabalhos na Europa no fim dos anos 60 e início dos 70. Os homens — em especial, o executivo da indústria fonográfica André Midani (in memoriam) e o jornalista e escritor Nelson Motta — são unânimes em dizer que Elis não fez sucesso no exterior “porque não quis”, com certo ar de desdém, e a montagem do documentário reitera esse ponto de vista ao intercalar essas falas com trechos do programa “Ensaio”, da TV Cultura, exibido em 1973 e erroneamente creditado como sendo de 1971.

Nos fragmentos usados no filme e tirados de seu contexto original, Elis faz uma reflexão sobre as relações humanas e a finitude da vida terrena. Ela fala sobre seu afastamento do compositor Edu Lobo, reconhece a importância do cantor e compositor Cyro Monteiro e lamenta não ter expressado sua afeição por Agostinho dos Santos em vida. Tanto Cyro quanto Agostinho haviam falecido pouco tempo antes, em julho de 1973.

“A gente anda ressabiado de dizer que gosta das pessoas. Então a gente inventa coisa, entende? (…) De repente você se toca que não tem mais nada para ser feito, entende? É tarde paca. Quer dizer, eu não acho que seja tarde, entende? Porque eu acho que as coisas não se acabam aqui. Isso aqui é uma passagem, a gente vem pra cá porque tem que melhorar. (…) Eu acredito que não é só isso. Mas de qualquer forma é muito triste as pessoas só saberem que a gente gosta delas depois que elas se foram”.

Pouco depois da exibição dos trechos, em uma decisão extremamente questionável, é exibida ao espectador a imagem da cantora morta, em seu caixão, em 19 de janeiro de 1982. O subtexto que fica é que a Pimentinha não quis ter carreira internacional por besteira, morreu cedo demais e perdeu a chance. O depoimento — altamente parcial — do músico Wayne Shorter sobre o álbum com Elis que nunca aconteceu é mais uma peça nesse quebra-cabeça bizarro. “Altamente parcial” porque há outras versões para a história contada por ele, dando conta de que aquele convite maravilhoso tinha suas desvantagens.

Depoimento de Cesar Camargo Mariano à jornalista Regina Echeverria, publicado no livro “Furacão Elis”. Fotos da edição do acervo pessoal da autora.

Em toda essa discussão sobre o que Elis poderia ter sido e não foi, são ignoradas as motivações e escolhas artísticas de uma mulher politicamente consciente que queria se sentir vinculada ao seu país de origem e fazer arte para o povo, em meio à ditadura militar. É como se espetáculos como “Falso Brilhante” (1975–1977) e “Transversal do Tempo” (1978), com conteúdo artístico engajado e material musical de excelente qualidade, não tivessem existido. Assim em “Elis & Tom” como em “Elis”.

Da mesma forma, o documentário trata Elis como uma artista sem poder de decisão sobre sua própria carreira. Toda a transformação musical e conceitual vivida pela Pimentinha no início dos anos 70 é creditada às consequências de um único evento: a apresentação nas Olimpíadas do Exército, em 1972, que por sinal nem chega a ser contextualizada adequadamente. Nesse caso, ponto para a cinebiografia de Hugo Prata, que pelo menos explica que não era apenas mais um show marcado à revelia de Elis, e sim uma retaliação política. De resto, nenhuma palavra sobre a importância do encontro afetivo-musical da cantora com o maestro e arranjador Cesar Camargo Mariano, nem sobre o desejo de mudança que ela mesma expressava naquele momento. O refinamento das interpretações de Elis, resultado de um longo processo de evolução pessoal e artística e registrado em três álbuns gravados entre 1972 e 1974, é atribuído única e exclusivamente à convivência pontual com Tom Jobim.

A presença de Humberto Gatica é um bom momento do documentário “Elis & Tom”. Foto: Reprodução

O documentário tem seus bons momentos, claro. A inclusão de entrevistas com os músicos que participaram do álbum, como o baterista Paulo Braga e o guitarrista Hélio Delmiro, é muito bem-vinda. O depoimento do recluso Cesar Camargo Mariano é uma grata surpresa: com simpatia e bom humor, o maestro conta tudo sobre a experiência agridoce de trabalhar com o ídolo, entre o encantamento e a tensão pelas dificuldades do projeto. Entretanto, até mesmo os instrumentistas têm sua importância diminuída pela narrativa do longa, talvez para refletir o julgamento que o próprio Tom Jobim tinha sobre a banda que acompanhava Elis. A todo momento, fica a impressão de que a figura do maestro se impôs sobre todas as outras, ainda que com algumas adaptações ali e aqui. Basta ouvir o álbum atentamente para saber que isso não é bem uma verdade. Outro acerto é a entrevista com o hoje renomado engenheiro de áudio Humberto Gatica, então novato na profissão, que teve o álbum “Elis & Tom” como seu primeiro trabalho.

Enquanto se detém sobre os aspectos de produção e gravação do álbum, apresentando imagens de bastidores até então desconhecidas, o documentário se recupera bem dos primeiros tropeços. No entanto, perto do fim, há uma derrapada feia que retoma o viés problemático citado no início deste texto. A representação de uma Elis insegura, instável e desequilibrada é levada às últimas consequências pela voz de seu próprio filho, João Marcello Bôscoli, e do executivo André Midani. Enquanto o primeiro diz que “Elis não teve tempo de entrar em decadência, ela morreu no auge”, o segundo chega a dizer com todas as letras que Elis se matou porque era vítima do próprio perfeccionismo e talento. Também é citado que a cantora temia envelhecer e não ser capaz de dar o melhor de si em um palco.

Elis em uma das imagens de arquivo presentes no filme. Foto: Divulgação

Ainda que seja verdade, fica o questionamento: a quem serve remexer a ferida de uma morte precoce e ainda hoje controversa? Qual a necessidade de explorar esse tema para falar sobre a grandiosidade do trabalho conjunto de dois dos maiores gênios da Música Popular Brasileira? Em tempo: quem é fã de Elis e estudou sua biografia sabe que no fundo não há consenso sobre a morte da artista ter sido provocada ou acidental. Existem muitos pormenores na discussão, que não cabem aqui, da mesma forma que esse assunto não deveria caber no filme.

É dessa forma que “Elis & Tom: Só Tinha De Ser Com Você” perde a chance de ser uma grande obra sobre um dos maiores álbuns da música mundial para se tornar um registro do quão pequena fica a maior de todas as cantoras brasileiras, quando enquadrada pela lente tacanha do olhar masculino. Pior ainda, com a anuência dos curadores de seu legado musical. Jom Tob Azulay e Roberto de Oliveira tinham tudo nas mãos para fazer um trabalho impecável, sensível e respeitoso com todas as partes envolvidas, mas preferiram o caminho mais fácil e talvez nem tenham se dado conta das microagressões presentes em suas escolhas. Para os fãs, Elis segue sem ter um produto cinematográfico à sua altura. Perde o público geral, que novamente entra em contato com uma representação distorcida da Pimentinha, na arte e na vida.

Veja o trailer:

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