O “chiadinho da agulha”

Uma análise levemente mal-humorada da volta do vinil

Julli Rodrigues
Ouvindo Coisas
8 min readApr 11, 2016

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Foto por Mikk_Mikkelson, do Flickr

O mundo tem assistido a um fenômeno que pouca gente, dadas as circunstâncias, poderia prever: o retorno dos discos de vinil. Segundo a Nielsen SoundScan, em 2014 a venda de LPs atingiu o maior patamar nos Estados Unidos desde 1991, com 9,2 milhões de unidades. No Brasil, a Polysom, primeira fábrica de vinil a retomar as atividades no século XXI — e que por muitos anos foi a única do país — declarou um aumento de 126% nas vendas entre março e maio de 2014.

Mas, para haver essa ascensão, obviamente foi necessário que houvesse uma queda. E essa queda se deu graças a expedientes de natureza duvidosa, segundo contam integrantes de fóruns especializados no assunto. Com o surgimento do CD, nos anos 1980, houve um esforço conjunto das indústrias para impulsionar o novo formato. Como se deu essa manobra? Além da propaganda massiva e da redução gradual da produção de LPs, com um pouco de atenção se pode notar que, a partir do final da década, os aparelhos de som sofreram verdadeiras baixas na qualidade de seus toca-discos. Essa tendência foi muito perceptível no Brasil.

Um exemplo de 3 em 1 da década de 1990

Se antes era comum encontrar sistemas modulados e até mesmo aparelhos 3 em 1 com construção boa — ou ao menos razoável — por um bom preço, nos anos 90 começou o império dos systems de plástico baratos com toca-discos extremamente simples. Prato de plástico, tração por correia — bem frágil, diga-se de passagem — , cápsula de cerâmica e vários outros aspectos que na prática significavam um resultado pífio em termos de qualidade de som na reprodução de um disco de vinil. Ou seja: mais uma maneira de fazer as pessoas desistirem do obsoleto e pouco prático LP. Afinal de contas, o CD era bem melhor, não era?

(Um adendo: no Brasil, pelo que me contam as pessoas que viveram a “época de ouro” do LP, nunca se teve uma cultura direcionada ao cuidado com os discos e aparelhos, a não ser entre os audiófilos. Obviamente, a falta de cuidado estraga os discos, causando chiados, estalos e arranhões, além de outras tragédias. Imagino que o “usuário médio” deva ter se sentido feliz com o CD também pelo fato de o formato dificultar que se chegasse a essas consequências.)

Mas o tempo foi passando e as coisas foram mudando. Os consumidores de música que buscavam alguma qualidade sonora — e não apenas se contentavam com o fato de a música estar tocando — passaram a advogar em defesa do vinil. Argumentavam que o formato proporciona uma resposta de frequência muito mais ampla, que permite uma experiência de audição analógica, sem perdas devido à compressão, que ele não está sujeito à chamada “loudness war”, que o som é mais “quente”, mais próximo da sensação de ouvir os músicos tocando ao vivo.

Para além das questões técnicas do áudio, o formato em si tinha seu charme: vários artistas se aproveitavam dele para produzir verdadeiras obras de arte. Em tempos de “tudo digital”, talvez fizesse falta ter uma gigante capa de disco nas mãos. E, timidamente, os LPs, nossos velhos conhecidos, foram ressurgindo nas prateleiras e passando a sumir dos sebos, onde já estavam mofando.

Nostalgia e geração Y

Aqui entra um fator surpresa que ajudou bastante a impulsionar as vendas dos discos de vinil na atualidade: a tendência nostálgica muito forte entre os millennials (ou geração Y), nome dado à geração nascida entre a metade dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Numa perspectiva sociológica, a nostalgia permite aos seres humanos a manutenção de suas identidades ao enfrentar fases de transição nos ciclos de vida, como a passagem da adolescência à idade adulta. Mas, segundo Stern (1992; apud HERNANDEZ, 2011), a nostalgia enquanto tendência de comportamento geralmente surge durante os anos de declínio de uma época, como períodos de transição entre séculos ou milênios.

O marketing se aproveita dessa tendência para promover produtos: se hoje compramos com o objetivo de passar o tempo ou preencher necessidades, antigamente cada compra trazia consigo uma carga de emoções. A nostalgia faz com que seja estabelecida uma ligação emocional com o produto que remete ao passado — aquele tempo onde tudo era mais simples. Como a geração Y, nascida quase na virada do século, foi a última a conviver com tecnologias hoje consideradas velhas, ela busca uma reconexão com esse passado — que hoje já parece tão distante graças à aceleração do espaço-tempo e à rápida evolução tecnológica.

Outro fator importante está na formação de identidades através do consumo. A “onda retrô” se relaciona muito com a busca pela autenticidade num mundo que parece cada vez mais padronizado. A geração Y se relaciona com as marcas e produtos como forma de compor a própria identidade, e assim eles absorvem os rituais tradicionais associados a esses produtos, reinterpretando seus significados. E assim, comprar e ouvir vinil se tornou cool, de forma que até o “chiadinho da agulha” foi romantizado.

As razões dadas pelos jovens para essa identificação são muitas. Há quem alegue gostar da “superioridade do som” do LP, a exemplo dos audiófilos que citei alguns parágrafos atrás. Há quem diga apenas “sei lá… é diferente, é mais legal”. Há quem goste de ter uma mídia física em mãos porque é bom contar com algo palpável em tempos de streaming e música volátil. Com justificativas diversas, eles ajudaram a elevar as vendas de discos nos Estados Unidos a níveis que foram vistos pela última vez no ano de 1989.

Os efeitos colaterais

Tudo lindo e maravilhoso com esse recente apego dos millennials aos discos de vinil, afinal, é muito satisfatório ver de volta ao topo uma mídia que muitos julgavam decrépita. Mas há alguns detalhes que a maioria parece esquecer ou desconhecer.

No início deste texto eu mencionei a queda da qualidade dos aparelhos de som como um fator importante para a derrocada do vinil nos anos 90. Eis que, ironicamente, a volta dos LPs vem acompanhada justamente por… vitrolinhas de plástico. Portáteis, com apelo retrô, bonitinhas, prontas pra sair bem na foto. Vendidas em lojas de departamento, cativam pelo visual, pelo preço e pela facilidade de aquisição. Parecem perfeitas para se ter uma experiência descomplicada com discos de vinil. Só que ao contrário.

Aqui entra uma questão que parece papo de audiófilo chato, mas é extremamente importante: a qualidade da reprodução do vinil, bem como sua boa conservação, é diretamente relacionada à qualidade e aos ajustes adequados do sistema usado. Construção física, prato, tração do motor, braço, alinhamento da cápsula, tipo de agulha, tudo influencia. Uma agulha ruim pode destruir irreparavelmente os sulcos de um disco. Um braço com excesso de peso também provoca danos profundos. Enfim, ninguém disse que era fácil.

Dito isso, só pode ser piada quando alguém compra uma dessas vitrolinhas e diz que “o som do vinil é melhor que o do CD” partindo desse referencial. É o caso de grande parte dos millennials amantes do LP, infelizmente. O que se pode extrair de um troço que é basicamente uma maletinha com prato de plástico puxado por um motor fraco, com braço de plástico sem contrapeso, cujo som sai de alto-falantes iguaizinhos aos de caixa de som de computador?

Tem como levar a sério um negócio desse?

A construção dessas vitrolas é tão pobre que não aguenta o vinil 180g caríssimo do Tame Impala que o (in)feliz proprietário comprou de um site gringo. Ou o disco pula ou sai arranhado. Vale o investimento? Para mais informações, recomendo a leitura desta reportagem da Gazeta do Povo.

Em resumo: o barato e o hype saem caro. Investir num vintage de verdade é muito mais rentável — e talvez até seja mais cool, né? — , mas requer cuidado e dedicação.

Outra problemática deste retorno do vinil está no vertiginoso aumento dos preços dos discos nos sebos. Com o aumento da procura, o mercado inflacionou. Até aí tudo bem, normal. A questão é que o status agregado ao LP influencia muito nisso tudo. Como resultado, não é raro ver discos de diversos estilos — em especial os clássicos do rock e os álbuns cult da MPB — custando o dobro ou o triplo do que custavam antes. Há até mesmo discos que não têm tanto valor simbólico assim — não são raridades, por exemplo — , mas que passaram a custar caro como se fossem obras do cânone da música. E nem sempre estão em bom estado.

Claro, vale lembrar que os vendedores cobram caro porque há quem pague caro. E arrisco dizer que só há quem pague caro porque não há um mínimo de conhecimento sobre o universo do vinil, sobre o que é e não é raridade, sobre quais os valores de base. Talvez sejam essas as pessoas que compram vinil só pelo vinil. Ou só pelo chiadinho da agulha.

A propósito, não posso terminar esse texto sem dizer que o chiadinho da agulha, os estalos e os barulhinhos não são características inerentes ao vinil. São sinais de mau uso: mau armazenamento, má conservação, falta de limpeza, falta de cuidado no manuseio. Um disco bem cuidado pode soar limpo e claro como um CD (ou até melhor).

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