Especial Educação e internet no interior

1. Quando é preciso ensinar aquilo o que você nunca aprendeu

Reportagens Especiais
OVA UFPE
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6 min readOct 2, 2020

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Marinez, analfabeta, dispõe de um único celular para toda família se comunicar e estudar: seu caso revela os enormes desafios enfrentados por estudantes, professores e escolas no interior do Estado. Confira esta e outras histórias no especial sobre educação no ambiente pandêmico nas cidades do interior de Pernambuco. Os textos foram produzidos por Cladisson Rafael, Gessica Amorim, Layane Lima e Maria Souza e são publicados em parceria com a Marco Zero Conteúdo

Mirian, 9, recebe as tarefas via WhatsApp: mãe cuida de três filhos e tem pouca estrutura tecnológica em casa (foto: Layane Lima)

Layane Lima

Em um país onde cerca de 1,8 milhões de pessoas entre 9 a 17 anos não são usuários de internet e 4,8 milhões de crianças e adolescentes residem em domicílios que não possuem acesso à rede (dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação/Cetic.br), estudar durante o período de pandemia pode ser tarefa quase impossível.

O atual cotidiano da família de Marinez Odete, 36 anos, e da pequena Mirian Raquel, 9, é um bom exemplo desse desafio. A criança, que vive em Lagoa dos Gatos, a 132 quilômetros do Recife, estuda através das atividades e aulas enviadas via WhatsApp pelos professores da Escola Municipal Cordeiro Filho. Mas Marinez, uma entre os 11 milhões de pessoas analfabetas no país, sente que não tem condições de ensinar a criança. “Eu não tenho estudo, o que sei é muito pouco, não sei nem ler”, desabafa. Ana Clarice, 14, e Evanielson, 17, irmã e irmão de Mirian, também estão tendo aulas on-line e não sobra muito tempo para ajudar a caçula.

Existe um outro problema: o celular de Marinez é o único aparelho eletrônico que eles possuem na casa para manter a comunicação com a escola de Mirian e a de seus irmãos. “Só tem eu como pai e mãe deles, é uma tarefa puxada, uma preocupação para estar sempre auxiliando. Eu incentivo Mirian a fazer as coisas da escola, no começo foi difícil pelo acesso ao meu celular, pois tudo é feito por ele, e às vezes preciso sair de casa e leva-lo. Isso atrasa um pouco na entrega das atividades”.

Crislayne não se adaptou totalmente ao ensino pelo celular e reclama do barulho em casa: "não consigo me concentrar" (foto: Layane Lima)

Esta realidade não é muito diferente entre outros alunos que estudam na rede municipal da cidade. Crislayne Vitória, 13, estuda no sétimo ano da mesma escola e conta que nunca havia participado de aulas remotas e não estava preparada para o ensino à distância. “Eu uso meu celular, mas não é muito bom”, explica a garota, que também aponta a própria dinâmica da sua casa como outro impeditivo para estudar melhor. “Uma das minhas maiores dificuldades é o barulho”.

Ela também estuda através do grupo criado pelos professores no Whatsapp. “Eu entrego todas as atividades e envio foto delas para os professores colocando o nome completo e a série. Durante as aulas, nós tiramos as dúvidas com os professores no privado e eles respondem“.

A TAREFA ÁRDUA DE QUEM ENSINA

A professora Daniela entende que o ensino remoto não é democrático em um país profundamente desigual

Daniela Correia, 26, é professora de língua portuguesa de Crislayne. Exerce a profissão há quatro anos e nunca havia lecionado virtualmente. Com a imposição das aulas on-line por conta da pandemia, a professora observa que as dificuldades não surgem apenas para os estudantes, mas professores e escolas também vivenciam impasses nessa modalidade. A própria estrutura precária comum para várias famílias é uma questão.

Para Daniela, a estratégia adotada — o ensino virtual — não é democrática, pois não abrange todos os discentes. “Eu observei a questão do celular. Muitas vezes o aparelho está com a mãe e ela trabalha, o aluno tem que aguardar a chegada da mãe para fazer o uso do mesmo. A falta de equipamentos tecnológicos e da internet é uma realidade de muitos no Brasil, temos consciência disso”. Mas, no final, a profissional sublinha que ficar sem estudar neste período também não poderia ser alternativa. “Seria pior para os alunos em todos os sentidos, tanto emocional como racionalmente. A educação liberta a luta, persistência e resistência de todos nós, e isso não pode parar”.

Entrega de apostilas para famílias sem acesso à internet é saída adotada por escola Cordeiro Filho, conta Edjailson (foto: Layane Lima)

Edjailson Aquino, 45, é gestor da escola Cordeiro Filho. De acordo com ele, cerca de 20% de alunos do local não têm acesso à rede, e uma das estratégias usadas pelas escolas municipais para diminuir uma possível exclusão desses alunos é a entrega mensal de apostilas para os pais com as mesmas atividades que são enviadas no Whatsapp.

Sobre a relação entre escola e família, o gestor afirma que outra dificuldade encontrada foi de explicar como os estudantes serão avaliados no final do ano letivo. “Alguns pais acham que os filhos irão passar de todo jeito e relaxam. Estamos conversando com eles e falando que se os estudantes não participarem das aulas, ano que vem terão que estudar as duas séries. Explicamos também que é necessário que o aluno tenha uma postura nas aulas on-line, assim como eles teriam em sala de aula”.

Na Escola Parque Nossa Senhora das Graças, o único colégio de rede particular de Lagoa dos Gatos, uma das maiores dificuldades encontradas pelas alunas foi a adaptação ao uso das plataformas digitais como meio de estudo. Lá, utiliza-se o Zoom para atividades síncronas (alunos e professores reunidos online em uma mesma sala) e o WhatsApp para o envio de atividades.

Conexão ruim é o grande desafio para Sueviliane manter suas atividades escolares

A estudante Sueviliane Menezes, 15, mora na Vila do Entroncamento. Seu maior desafio é conseguir assistir as aulas virtuais por conta da má conexão que chega à vila. “Às vezes os professores estão explicando um assunto importante e do nada a internet cai e isso me prejudica”. Éllida Gabriela, 13, é estudante do oitavo ano da escola parque e conta que levou um tempo para se adaptar. “Uma das minhas maiores dificuldades foi aprender a entrar no Zoom. Um dos pontos positivos é que estamos em casa, é mais confortável”.

Éllida demorou a se adaptar às aulas realizadas via aplicativo Zoom

Alayz Vasconcelos, 29, é professora da Escola Parque Nossa Senhora das Graças. Para ela os desafios surgem desde a preparação das aulas, até chegar ao aluno. “Queríamos abranger a todos por questão de igualdade e direito”. Para Alayz, um bom resultado tanto em aulas presenciais quanto virtuais, depende em boa parte no que o aluno recebe em casa. “Cada professor está fazendo sua parte da maneira que pode. Existem muitas famílias que não ajudavam nem quando o aluno estava em sala de aula e muito menos agora na pandemia. Nossa sociedade necessita de mudanças, os pais precisam entender que somos nós que ensinamos mas eles não as pessoas que educam, e tudo só vai dar certo quando finalmente existir uma junção entre família e escola”, desabafa.

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projeto de extensão do Observatório da Vida Agreste (OVA), Curso de Comunicação Social da UFPE/Centro Acadêmico do Agreste (CAA)