7.Na Sala dos Espelhos reúne Kylie Jenner, Bíblia, filosofia e Susan Sontag

Fabiana Moraes
OVA UFPE
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3 min readAug 24, 2023

Liv Strömquist. Imagem: reprodução

LUCAS BEZERRA, repórter do OVA

Não é novidade que elaboramos maneiras de ao menos aparentar que levamos uma vida interessante, saudável e feliz, mesmo que seja mentira (aliás, ninguém no mundo é interessante, saudável e feliz o tempo todo). Quem nunca tirou várias selfies e, na hora de postar, desistiu porque não se achou mais bonita ou bonito o suficiente? E o que isso tem a ver com Kylie Jenner, a princesa Sissi da Áustria, o busto de Nefertiti e Lia, uma das filhas de Labão da Bíblia? Essas discussões — e personagens — estão no ótimo livro Na Sala dos Espelhos: autoimagem em transe ou beleza e autenticidade como mercadoria na era dos likes & outras encenações do eu, de Liv Strömquist. É uma aula sobre o que está atrás de nossas selfies.

Usando como referência nomes como o filósofo Zygmunt Bauman, a escritora e ensaísta Susan Sontag, a socióloga Eva Illouz e a ativista e escritora Simone Weil, Liv traça em quadrinhos, lettering e argumentos, um plano geral interessantíssimo sobre nossa obsessão por nossa imagem — e pela imagem do outro. Ela inicia o livro questionando o porquê de as imagens postadas em redes sociais gerarem verdadeiras tendências (ou trends) e cita o que a influencer, modelo e empresária Kylie Jenner escreveu em seu perfil no Twitter: “Eu não estou aqui para incentivar as garotas a se parecerem comigo. Eu quero incentivar as pessoas e as jovens para que elas sejam elas mesmas e que não tenham medo de experimentar o seu estilo”. Apesar disso, as pessoas continuam desejando ter o mesmo lábio de Kylie, a mesma bunda, os mesmos olhos, o mesmo carro, a mesma casa. Resumindo: a mesma vida.

Por quê?

A resposta que Liv traz no livro é baseada na teoria do desejo mimético, ou seja, nós desejamos o que o outro deseja e isso se sustenta porque o ser humano NÃO SABE o que desejar, como lemos no livro. Seria muito exaustivo nos questionarmos o tempo todo sobre o que queremos, argumenta a autora se baseando no filósofo e historiador René Girard. Por isso, elegemos um mediador, que pode ser uma celebridade ou alguém do mundo “real”, um amigo — ou mesmo um inimigo, por antítese. “As pessoas simplesmente copiam o desejo do mediador. Dessa forma, o indivíduo não precisa sempre pensar no que deseja, o que é reconfortante. Para despertar o desejo por algo, basta convencer a pessoa de que tal coisa já é cobiçada por alguém com algum tipo de status”.

Sentiu aí também?

Segundo a autora, esta é uma lógica bastante explorada pela indústria: atrelar objetos a significados “fúteis” que vão além de sua funcionalidade, agregando status de poder e classe. Um aparelho celular não é apenas um objeto para fazer ligações. Uma roupa não serve apenas para proteger nosso corpo do frio. O corpo não é apenas a casca que abraça nossos órgãos, mas é uma máquina de alta performance que não pode fraquejar. E selfie é todo um mundo que podemos desejar.

Você pode pensar: ok, mas alguns desses questionamentos já existiam antes da internet e das redes sociais. É verdade: esses desejos difusos e mediados têm relação com a própria economia capitalista. Nela, “pensamos que tudo é — ou precisa ser — uma curva eternamente ascendente”. Sempre bonito, sempre feliz, sempre disposto, sem rugas, sem dores musculares, sem adoecer, sempre produtivo, sempre inteligente, sempre bem vestido.

A partir daí, o livro segue adicionando camadas e personagens na discussão. As diversas histórias que exemplificam a função da beleza, questionando, inclusive, que tipo de beleza e o que seria essa tal beleza. Kylie Jenner, a princesa Sissi, o busto de Nefertiti e Lia, personagem bíblico são exemplos para compreender as percepções de cada época e perceber como elas se repetem ou não hoje. Afinal de contas, para que serve a beleza?

“A beleza não tem finalidade”, vai nos dizer Simone Weil. De fato, na real, não tem. Mas na economia das redes, na mitificação das pessoas e na óbvia transformação de todas e todos nós em um produto a ser vendido, ela é, hoje, um capital a ser explorado — e perseguido.

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Fabiana Moraes
OVA UFPE

jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE. autora dos livros O Nascimento de Joicy,Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões