Romper barreiras, quebrar paradigmas: possibilidades de uma selfie

Fabiana Moraes
OVA UFPE
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4 min readAug 24, 2023

Narrar a si, recuperar a auto-estima, comunicar se está ou não em segurança: registrar o próprio rosto é um ato repleto de complexidade

MAÍRA WELMA, repórter do OVA

“Cada selfie, um significado.” Para você, essa afirmação faz sentido? Em algum momento, enquanto você rolava o feed de uma certa rede social, você já parou para pensar se as inúmeras selfies postadas segundo após segundo possuem algum significado para além da auto exposição? Muitas vezes visto como ato fútil, produzir uma selfie pode ter um sentido mais profundo e coletivo, com questões que perpassam classe, raça, gênero, segurança, etc. É o que percebemos no caso da estudante de odontologia Beatriz Rodrigues, 25 anos, que hoje enxerga nas selfies a evolução da boa relação que ela possui consigo mesma. Mas nem sempre foi assim.

Durante sua adolescência, Beatriz registrava paisagens e cenas do cotidiano, mas nunca voltava a câmera para si mesma. Os autorretratos não faziam parte do seu dia a dia por ela não se sentir confortável com suas próprias características físicas: achava a pele clara demais, rejeitava o formato do rosto, brigava com as espinhas. Com o tempo — e a popularização do debate auto aceitação em redes como Snapchat e Instagram — ela passou a tomar gosto pelo ato de se fotografar. “Hoje eu gosto de fazer selfies por querer mostrar um momento ou uma situação que eu estou vivendo”, relata.

O caso da estudante demonstra dois pontos extremamente importantes na cultura contemporânea: o primeiro evidencia uma convivência menos sofrida com o próprio corpo — um tema central principalmente no cotidiano de mulheres das mais variadas idades e gêneros -, enquanto o segundo revela que as selfies agem também para “eternizar” um momento significativo para si. Mas há outras questões ainda mais complexas nesse mar de imagens.

O professor e antropólogo David Nemer, do Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia, autor do livro Tecnologia do oprimido: desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil, descobriu, ao entrevistar moradoras/es de favelas localizadas em Vitória (ES), que uma simples selfie também embute mensagens acessíveis apenas para um grupo específico de pessoas. Elas podem, diversas vezes, ter relação com a própria sobrevivência.

Ao entrevistar pessoas que iam a locais como o Telecentro de Itararé (que concentravam serviços digitais em regiões populares), por exemplo, ele percebia que algumas delas postavam fotos de si para driblar o machismo dos companheiros; outras, para escapar, apesar da contradição, dos olhares de traficantes.

“Todo mundo fora desses grupos não consegue ler a real mensagem. Para eles, a foto possui um outro significado.” É como um tipo de criptografia ou estenografia social. Ela pode ser exemplificada através do relato de Fernanda, 16: após presenciar um tiroteio, ela entrou em uma lan house, acessou o Facebook e postou uma selfie chorando. Era, contou, uma forma de protesto sobre as condições de vida do lugar onde ela mora. Jefferson, 17, também revelou a Nemer que postou uma foto do próprio rosto após sobreviver a um tiroteio. Era uma forma de agradecer por estar vivo.

Mas a simples imagem postada por Fernanda teve repercussões: um membro do tráfico local a confrontou e a questionou sobre a imagem. Desconfiado que o choro fora causado pela violência local, disse que ela poderia ir embora dali “se não estivesse feliz”. Para se proteger, ela achou melhor afirmar que fez a foto após uma briga com o seu namorado. Assim, a real mensagem do seu autorretrato ficou clara apenas para um grupo seleto de parentes e amigos.

Outra questão importante: Nemer também percebeu que as selfies eram produzidas para romper com os estereótipos relacionados às populações faveladas, reiteradamente estigmatizadas. “Geralmente, quando esses grupos frequentemente julgados mostram seus rostos, aparecem em situações que rompem as barreiras do preconceito, eles mostram que esses estigmas são na verdade mitos que não persistem sob aquela população.”

O autor, também autor do fotolivro Favela Digital — O outro lado da tecnologia, conta que a ideia inicial da obra era justamente usar a cara da população para quebrar os estigmas em relação aos moradores da favela, frequentemente representados como seres inferiores e mal educados. “Quando você põe seu rosto, personalizando uma foto que quebra esse estereótipo, você tem um poder muito grande de mudar os preconceitos e as formas como as pessoas de fora veem esses espaços e essas populações.”

O MÉTODO DO EU — Crislayne Silva, 21, também estudante de odontologia, é uma espécie de “selfeira” profissional: desde pequena, ela estava à frente das câmeras posando para as fotos de parentes e familiares. Na adolescência, e com o aprendizado de técnicas digitais, o gosto por se fotografar foi crescendo. Ela conta que gosta de se registrar em momentos diferentes e ocasiões especiais, mas não só. “É uma forma de me enxergar fora da minha própria redoma. A fotografia é uma forma humana para expressar emoções, as pessoas capturam suas personalidades, seus jeitos de se vestir e agir”, diz ela, lembrando que esse processo provoca afeição e identificação.

O pesquisador David Nemer compreende bem essas entrelinhas das auto-imagens, e diz que pensar a selfie deve ir além de encarar o ato como uma questão momentânea. “Se pararmos para pensar em questões como quando, onde e com quem tiramos nossas próprias selfies, poderemos identificar a existência de um padrão e a criação de uma própria metodologia, que varia de acordo com as condições de vida e os privilégios de cada um de nós.”

E aqui deixamos uma pergunta: na hora de tirar sua selfie, que mensagem você quer passar?

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Fabiana Moraes
OVA UFPE

jornalista, escritora e professora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE. autora dos livros O Nascimento de Joicy,Nabuco em Pretos e Brancos e Os Sertões