Seguir a criatividade ou a mesmice que garante o lucro?

OVA UFPE
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5 min readDec 8, 2023

Pesquisador Marcio Sá lança livro Além do barro: heranças de Vitalino no Alto do Moura do século XX, no qual mostra os desafios da produção artesanal no Alto do Moura, em Caruaru

Marcio Sá, coordenador do projeto de pesquisa que originou o livro. FOTO: Leopoldo Conrado/ divulgação

O Alto do Moura, um dos maiores centros de artes figurativas da América Latina, em Caruaru, recebeu mais de 500 mil visitantes no São João de 2022. Em 2023, a cidade contou com 3,6 milhões de pessoas participando da festa, de acordo com a prefeitura. O centro de artes figurativas é responsável por movimentar grande parte da economia e produção artística do município. Mas, fora da época de festas e longe dos holofotes dos turistas, os artesãos enfrentam dilemas diários que se estendem para além da arte e perpassam questões sociais, políticas e geográficas. Os artistas encontram-se no dilema de fazer peças autorais ou produzir em série, por exemplo. As primeiras mostram a capacidade criativa das e dos artistas locais. As segundas, garantem preços baixos e mais vendas.

Questões como essas estão presentes no decorrer de três capítulos no livro Além do barro: heranças de Vitalino no Alto do Moura do século XX, lançado no Auditório Mestre Vitalino do Centro Acadêmico do Agreste (CAA) da UFPE. A ideia do estudo nasceu devido à falta de materiais que investigassem os desafios atuais da região, como precarização do trabalho, violência, disputa por matéria-prima, etc. A iniciativa é fruto de uma pesquisa coletiva iniciada na UFPE de 2017 a 2021.

O trabalho foi orientado por Marcio Sá (docente do CAA na época, atualmente professor da Universidade Federal da Paraíba), com a colaboração das professoras Myrna Lorêto (UFPE), Denise Souza (UFPE) e Jessica Sousa (IFRN), além de alunos/as do Grupo de Estudos e Intervenções do Agreste (GEIA) do CAA. O trabalho foi inspirado em duas obras anteriores de Marcio: Feirantes — quem são e como administram seus negócios e Filhos das feiras: uma composição do campo de negócios agreste.

Janniny Nascimento, repórter do Observatório da Vida Agreste (OVA),conversou com Marcio para entender mais sobre a elaboração do livro.

Como surgiu a pesquisa?

O ponto de partida vem de uma experiência pessoal, de um interesse pelo Alto do Moura, onde eu morei. Como eu gosto de registrar no livro, fiz ali uma morada afetiva por muito tempo. Parte do período que estive lá, eu vi transformações acontecendo. Eu vi as fachadas das casas se modificando. Eu vi a diminuição das pessoas envolvidas com as atividades artesanais. Quando eu cheguei para morar lá, era muito comum você ver as janelas abertas e as pessoas transitando ou secando suas peças nas calçadas, hoje há mais violência e menos pessoas trabalhando com artesanato. A atmosfera do bairro era muito diferente. Havia também questões de violência urbana, questões de urbanismo…

Também foi uma lacuna que eu encontrei na literatura sobre o Alto Moura, uma literatura que era muito voltada para a história, para o papel de Mestre Vitalino, para outros aspectos que não são esses desafios do contemporâneo, sabe? Dessa forma, a pesquisa, as entrevistas realizadas com moradores do Alto do Moura, visitas, etc, vieram muito desse movimento, dessa experiência de vida, desse anseio de concluir um trabalho sobre um lugar com o qual eu tenho essa ligação visceral.

E depois, como foi o processo para a adaptação para o livro?

Na verdade, é uma tendência das pesquisas que eu desenvolvo e que tenho a oportunidade de coordenar e conduzir para apresentá-las ao final como livro. Geralmente, os relatórios já vão tomando essa forma de livro e, cada vez mais, eu tenho me esforçado para que seja um texto acessível para vários públicos. É um esforço continuado de tradução da pesquisa científica para a literatura.

O embate entre fazer peças autorais ou fazer sob demanda, vivido pelos artesãos, é um tema complexo. Não existe um lado certo e errado, o artista precisa vender o seu trabalho, mas também sente a necessidade de fazer o que sente. Dentro do processo de pesquisa de vocês, como isso surgiu?

Essa é a trama da pesquisa. Ela parte dessa tensão íntima e coletiva de querer fazer um tipo de trabalho e precisar fazer outro para sobreviver. Então é uma tensão que não é somente do artesanato. Acho que até na introdução eu faço algumas menções nesse sentido. Se você é jornalista, mas quer escrever ficção, você trabalha com vendas, mas quer ser chefe de cozinha. Esses dilemas são contemporâneos: fazer peças em série para sobreviver do barro ou tentar investir na produção de peças autorais que são mais difíceis de conseguir vender. Ou ainda, largar o artesanato e abrir um outro negócio. Esses eram os principais dilemas que deram o ponto de partida para a pesquisa.

Começamos a ver e entender que a comunidade, os artesãos e as lojas, oficinas, estão tão imbricados, tão vinculados, que você não consegue tratar somente desse dilema sem entender as tensões na comunidade, sem entender o desengajamento dos mais jovens, sem entender outras questões que foram aparecendo naturalmente no curso da pesquisa. A artesania está no século XXI, está enfrentando dilemas que outras pessoas também se deparam em outras atividades.

O fato é que hoje, para que você faça algo autoral, você produz em série algumas peças e também comercializa isso. Nesse aspecto, dentre as entrevistadas, encontramos Aliene da Silva, aquela que talvez tenha tido mais êxito nesse quesito, porque tem uma dinâmica de vendas constantes e consegue criar. Ela consegue encontrar espaço para criar, com filhos para cuidar e casa para administrar.

Para você, qual a importância de se traduzir textos acadêmicos e colocá-los acessíveis a todos os públicos como aconteceu com Além do Barro?

Quanto mais publicidade você dá para o trabalho que é feito na universidade, mais impacto ele pode ter na sociedade. São muitos anos para projetos de pesquisa, geralmente passamos anos das nossas vidas trabalhando no assunto. É muito trabalho que precisa ser de algum modo, acessível ao maior número de pessoas. Porque no fundo é o Estado brasileiro que está pagando por esse trabalho. Então, é carga horária docente dedicada. Isso é investimento público que está sendo feito. São bolsas, às vezes para os estudantes.

E um outro lugar de utilização desse trabalho é que serve como um material didático em diversas disciplinas acadêmicas. Para que esse desafio de entender uma região e de construir entendimentos sobre os fenômenos do lugar onde nós moramos, seja plantado, semeado nos jovens que estão sendo formados, para que eles possam ter uma atuação profissional mais esclarecida sobre onde estão atuando. Sobre que lugar é esse e como esse lugar funciona, como as pessoas são formadas por esse lugar. Essa é minha esperança.

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A proposta do laboratório é, a partir do contexto sociocultural do Agreste Pernambuco, realizar atividades de pesquisa e extensão.