Consciência, o último continente perdido

Psicodelia, lisergia e epifania: uma busca universal e atemporal pela expansão da nossa mente

OVNE História
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texto Marília Kodic
ilustrações Maurício Planel

Inspirar a fragrância fresca que se desprende da grama molhada, ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven, sentir uma cegueira temporária ao olhar diretamente para o sol, saborear o gosto ácido do limão, sofrer de um coração partido. O que nos possibilita vivenciar uma gama infinita de sensações é, também, aquilo que a ciência considera o último mistério não solucionado do corpo humano: a consciência. Embora seja algo que entendemos intrinsecamente, numa intuição cartesiana (penso — ou sinto –, logo existo), a própria definição de consciência é controversa, e até mesmo o fato de poder ou não ser objeto de estudo científico tem sido uma polêmica incessante entre estudiosos.

“Há alguns anos, não se podia usar a palavra ‘consciência’ em um artigo científico, por exemplo, nas páginas de revistas como Nature ou Science. Mas, felizmente, os tempos estão mudando, e o assunto está agora maduro para uma exploração intensiva”, escreveu, em 2004, o neurocientista britânico Francis Crick, ganhador do Nobel de Medicina e um dos responsáveis por descobrir a estrutura do DNA. De fato, nos últimos 20 anos, avanços tecnológicos, sobretudo em imagens cerebrais, têm proporcionado novas ferramentas para observar e medir com mais precisão as manifestações da consciência.

Em outras palavras, agora, em vez de tentar interpretar uma resposta subjetiva, como “isso faz com que eu me sinta bem”, cientistas podem analisar também que partes do cérebro do indivíduo estão respondendo, por quanto tempo e em que grau. Embora ainda não haja resultados conclusivos, é o começo de um entendimento objetivo onde antes havia apenas especulação. Mas, enquanto o material científico sobre consciência é fruto de uma história recente, a reflexão filosófica a seu respeito vem acompanhando a humanidade desde seus primórdios — assim como a vontade de transcendê-la.

Até que nem tão esotérico assim

Para nos permitir viver, nosso próprio cérebro nos boicota, ocultando informações não essenciais de nosso estado consciente. É como se não tivéssemos sido programados para perceber diferentes canais mentais, presos a uma única frequência padrão. A despeito disso, há séculos, vimos buscando meios de quebrar essa barreira. Todos os povos nutrem o mesmo desejo pela iluminação, sejam separados por época, país, etnia, idioma ou religião.

Desde o início de sua civilização, em 2000 a.C., os maias, por exemplo, foram norteados por uma teoria que elencava nove graus evolutivos de consciência — simbolizados, inclusive, no número de degraus das pirâmides construídas em seus sítios arqueológicos –, que iam da existência das primeiras células vivas ao alcance de um estado divino de onisciência. Na filosofia milenar dos hindus, são relatados quatro estados: o desperto, o de sonho, o de sono profundo e o absoluto, em que se atinge a consciência plena.

Mais recentemente, na virada do século 20, o psiquiatra canadense Richard Maurice Bucke publicou, em seu livro Consciência Cósmica, a distinção entre três tipos de consciência: a chamada simples, que consiste na consciência do corpo, possuída por muitos animais; a autoconsciência, tida somente por humanos; e a cósmica, uma espécie de conhecimento superior sobre a vida e a ordem do universo, vivenciada somente por seres iluminados.

Teorias estruturais dos diferentes níveis de consciência existem em abundância, mas o que todas têm em comum é, em algum nível, a crença na possibilidade de se chegar a um estado superior, de iluminação e onisciência. Em suma, nossa urgência de transcender é universal e atemporal. Ou, como poeticamente escreveu Guimarães Rosa em sua magnum opus sertaneja: “A cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”.

Sem atalhos

Talvez o modo mais conhecido de se atingir um estado de epifania seja por meio da meditação, técnica milenar em que o indivíduo induz a mente a um estado alterado de consciência. Por meio de exercícios de respiração, repetição de um mantra ou foco em um objeto, ela visa proporcionar o relaxamento, a construção de uma energia interna, ou força vital (denominada qi, ki, prana etc.), e o aprofundamento de sentimentos como compaixão, paciência, generosidade, perdão e amor. Em muitas correntes espirituais e filosóficas, ela é também o canal para se atingir um estado puro e transcendental, em que se acessa uma dimensão oculta da psique.

Similarmente, a técnica conhecida como mindfulness, ou atenção plena, pode ser entendida como uma forma de meditação que visa treinar a mente para estar alerta de modo integral, numa atitude mais consciente e menos reativa, como uma espécie de antídoto ao estado mental dispersivo habitual. Disciplinas físicas como a ioga, também associada à prática meditativa, têm efeitos análogos — no cânon das antigas escrituras hindus, aliás, ela é descrita como “a unidade da respiração, da consciência e dos sentidos, seguida pela aniquilação de todas as condições da existência”, e “a firmeza calma que surge quando os cinco sentidos e a mente estão parados, a própria razão descansa em silêncio, e começa o caminho supremo”.

Técnicas como a privação sensorial — a remoção deliberada de estímulos de um ou mais sentidos, como flutuar num tanque completamente escuro usando fones que anulam o som exterior — e a audição de sons binaurais (melodias que têm o poder de acessar o subconsciente, podendo alterar o corpo quimicamente) também têm efeitos correlatos aos da meditação, ainda que em grau menor. A realidade, porém, é que para se atingir verdadeiramente um estado alterado de consciência são geralmente necessários níveis muito altos de disciplina, paciência e determinação — e, ainda assim, não há garantias. Mas, para quem não se importa em pegar atalhos, há uma boa notícia: o estado nirvânico está rapidamente acessível por meio do uso de substâncias psicoativas.

Doces bárbaros

“Se você leva a sério sua religião, se você realmente deseja se comprometer com a busca espiritual, você deve aprender a usar psicoquímicos. As drogas são a religião do século 21. Buscar a vida religiosa hoje sem usar drogas psicodélicas é como estudar astronomia a olho nu, porque é assim que o fizeram no primeiro século d.C.”, escreveu, não sem polêmica, Timothy Leary — neurocientista, professor de Harvard e possivelmente o mais célebre defensor do LSD — no livro A Política do Ecstasy, em 1968, no auge do movimento hippie. Para ele, o telescópio e o microscópio foram criminalizados exatamente pelas mesmas razões que as plantas psicodélicas foram banidas anos depois: “Eles nos permitem espiar parcelas e fragmentos do Caos”.

Leary manteve seus princípios em relação às substâncias psicoativas por toda a vida e, em 1994, apenas dois anos antes de morrer, gravou o que chamou de um vídeo de serviço público, intitulado Como operar seu cérebro. Nele, adverte: “À medida que nossa espécie enfrentou o fato assustador e aterrorizante de que não sabemos quem somos ou aonde estamos indo neste oceano de caos, foram as autoridades — políticas, religiosas, educacionais — que tentaram nos confortar, ao nos dar ordem, regras, regulamentos, informando — formando em nossas mentes — sua visão da realidade. Para pensar por si mesmo, você deve questionar as autoridades e aprender a se colocar em um estado de mente aberta vulnerável, confusa e caótica para se informar”.

Embora sejam um tabu na sociedade moderna, as drogas psicodélicas estiveram presentes em todas as épocas e culturas da humanidade, o que nos permite concluir que, além de continuamente buscar meios de revelar a psique oculta, também sempre o fizemos quimicamente. O uso das folhas de coca, por exemplo, das quais deriva a cocaína, remonta a até 8 mil anos atrás, por civilizações pré-incas da América do Sul que consideravam a planta sagrada. Evidências arqueológicas datam o uso do ópio em mais 7 mil anos, e indícios do uso de cannabis, de cujos botões se origina a maconha, remontam a 6 mil anos atrás, na Ásia.

A planta também figura com profusão em antigas escrituras de correntes religiosas hindus e budistas — em uma delas, relata-se que Buda passou seis anos se alimentando apenas de uma semente de cannabis por dia. O haxixe, extraído da mesma planta da maconha, mas mais potente, tem seu uso pioneiro pelos sufistas, sectários da corrente mística do islamismo. Há também a mescalina, cujo uso por nativos norte-americanos é estimado em 5.700 anos atrás, o ayahuasca (conhecido também como chá do Santo Daime), utilizado por índios amazônicos há mais de 4 mil anos, e os cogumelos psicoativos, chamados de “carne de deus” pelos maias, com uso estimado desde 3.500 anos atrás, entre outras centenas de substâncias com efeitos análogos.

Uma delas, inclusive, é produzida pelo próprio corpo humano. Trata-se do DMT, princípio ativo psicodélico encontrado in natura em dezenas de plantas, e facilmente reproduzido em laboratório. Para o escritor, filósofo e etnobotânico norte-americano Terence McKenna, ferrenho defensor do DMT até sua morte, em 2000, o composto é o mais potente alucinógeno conhecido pelo homem e pela ciência, e também o mais comum em toda a natureza. Durante uma palestra em 1993, ele disse, sobre seu consumo: “Essa experiência é de uma ordem fundamentalmente diferente do que qualquer outra experiência deste lado do túmulo bocejante. (…) Por que isso não é uma manchete de 10 centímetros em todos os jornais do planeta, eu não consigo entender. Eu não sei por que notícia vocês estavam esperando, mas esta é a notícia pela qual eu estava esperando”.

Onde os fracos não têm vez

Vale advertir: servir-se de uma chave química que abre a mente e libera o sistema nervoso de seus padrões usuais não é algo a ser tratado com leveza. Em primeiro lugar, apesar de a ciência atestar que as substâncias psicodélicas não causam efeitos nocivos ou dependência, elas apresentam perigos em virtude do fato de que, quando naturais, têm difícil acesso direto da fonte, e, quando sintéticas, apresentam o risco de serem impuras, misturadas a outros componentes — isso sem entrar no mérito de seu porte ser ilegal na maior parte do mundo.

Além disso, cada experiência psicodélica tem desdobramentos únicos, influenciados por variáveis como ambiente, companhia, estado de espírito e dose ingerida. Há 50 anos, Leary já advertia, sobre o uso do LSD, algo que cabe para qualquer alucinógeno: “Não tome a menos que você esteja especificamente preparado para sair de sua mente. Não tome a menos que você tenha alguém muito experiente com você para guiá-lo. E não tome a menos que você esteja pronto para que sua perspectiva sobre si mesmo e sua vida mude radicalmente, porque você vai ser uma pessoa diferente, e você deve estar pronto para enfrentar essa possibilidade”. Isso posto, o potencial positivo dos psicodélicos é imenso, e finalmente temos evidências científicas para prová-lo.

Ponto de ruptura

No ano passado, um estudo publicado na prestigiosa revista PNAS por cientistas britânicos do Imperial College London foi considerado um dos maiores avanços recentes em relação às drogas psicoativas. Em resumo, ele detalhou o que acontece com o cérebro sob o efeito de LSD, mostrando que a separação que normalmente há entre redes independentes que operam funções distintas (visão, tato, atenção etc.) deixa de existir, e o cérebro passa a operar de modo mais integrado, como se estivesse unificado — como se a consciência, de fato, se expandisse.

Outro estudo pioneiro foi feito no Brasil, liderado pelo psiquiatra e professor da Unifesp Dartiu Xavier da Silveira, e expôs os efeitos positivos da ayahuasca por meio de análises com eletroencefalograma. “Nosso estudo foi o primeiro do gênero, e mostrou que muitas regiões do cérebro modificam seu funcionamento sob efeito do chá. Muitas dessas mudanças ainda não são fáceis de interpretar”, diz Silveira, que ressalta um fato curioso: “De forma geral, os traçados eletroencefalográficos são muito parecidos com os obtidos em pessoas em estado de meditação”.

Segundo ele, cada vez mais pesquisas têm revelado o potencial terapêutico do uso de substâncias psicodélicas. “Embora grande parte delas seja vista como perigosa, estudos mais recentes comprovam que elas não causam dependência, e oferecem riscos menores do que os observados entre usuários de álcool. Além disso, os sintomas de várias doenças parecem responder muito favoravelmente ao uso dessas drogas”, diz.

De fato, no ano passado, na Conferência Interdisciplinar sobre Pesquisas Psicodélicas, em Amsterdã, especialistas do mundo todo apresentaram teses comprovando o poder terapêutico de substâncias como o LSD, o MDMA e a ayahuasca no combate a doenças como a ansiedade e a depressão. E, no fim do ano, a equipe do neurocientista brasileiro Stevens Rehen publicou, na revista científica PeerJ, um estudo comprovando que a harmina, um dos compostos ativos da ayahuasca, tem potencial terapêutico contra a depressão, o mal de Alzheimer e a síndrome de Down.

Mas e para o cidadão médio, qual é, afinal, o efeito dos psicodélicos?

All you need is love

“De repente, minha consciência se iluminou por dentro, e eu vi de forma vívida como todo o universo era composto de partículas de material que, por mais enfadonhos e sem vida que pudessem parecer, estavam, ainda assim, cheios de beleza intensa e vital. Por um segundo ou dois, o mundo inteiro parecia uma chama de glória. Quando ela arrefeceu, me deixou com algo que eu nunca esqueci, e que constantemente me lembra da beleza trancada em cada minúscula partícula de material ao nosso redor.” O relato é do escritor britânico Aldous Huxley, autor do célebre Admirável Mundo Novo, sobre uma experiência com mescalina, publicada há 60 anos no livro Céu e Inferno.

Numa jornada psicodélica, as experiências e percepções são obviamente distintas, mas é possível notar um padrão que envolve cores ultrassaturadas, distorção do entendimento de tempo, cheiros que induzem a sons, transcendência do espaço, visitas a multiversos e até a dissolução da identidade — a chamada “morte do ego”, em que se perde a noção de existência enquanto indivíduo. No entanto, quando a força motriz para se chegar lá é bem-intencionada, a mais significativa e unânime descrição de um estado superior de consciência remete ao amor — seja via longos exercícios de meditação ou o uso de substâncias de efeito súbito, seja pelos extintos astecas ou pelo ateu do século 21. Em todas essas variáveis, o sentimento de união e harmonia com o universo é a constante em comum.

Em certo nível, é a experiência do que a filosofia chama de pampsiquismo: o conceito de que absolutamente tudo o que existe tem uma natureza psíquica e está interconectado. Ou seja, a ideia de que a consciência existe não só em todos os seres, mas também em toda a matéria — e tudo está conectado. Ou, como concluiu o filósofo Terence McKenna: “Estamos aprendendo que Deus não é uma ideia. Deus é um continente perdido na mente humana”. Quem sabe a ciência não coloca em breve esta ideia no mapa?

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