OVNE entrevista Triz

Nem rapper, nem Mc, nem homem, nem mulher. Conheça Triz, a pessoa por trás da canção. Por Fernanda Cintra.

OVNE Entrevista
OVNE
6 min readAug 8, 2017

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Se você não é uma das mais de 1.500.000 — sim, um milhão e quinhentas mil — pessoas que assistiram ao clipe de “Elevação Mental”, desde que foi lançado, há pouco mais de uma semana: assista. De cabeça e coração abertos, como Triz, a pessoa por trás da canção, gosta de recomendar.

Triz tem apenas 18 anos, 11 deles de intimidade com a música. E apesar da recente descoberta da sua identidade de gênero, tão recente quanto a sua relação com o rap, é comumente “rotulada” como Mc militante do movimento LGBT. Essa luta — que diariamente briga para que o Brasil deixe de ser o país que mais mata travestis e transexuais no mundo — é a sua, legítima; porém, entre outras tantas lutas, sentimentos, vivências e desejos que compõe o seu ser.

Aê motô, boa noite pro senhor

Triz é “natural” da zona sul paulista, ali perto de Diadema, uma realidade um tanto diferente da que está começando a viver. A família do pai, muito envolvida com música, foi o primeiro passo da sua jovem carreira artística, de forma que aos 7 anos já se apresentava na igreja Assembléia de Deus, e aos 8, já compunha as suas “primeiras musiquinhas”, do alto da garagem de casa. Por volta dos 13, se matriculou com a ajuda da avó em uma escola de música para aprender canto e violão, curso que, por falta de grana, quase largou um ano depois. Ganhou uma bolsa, seguiu por mais dois anos. Aos 15 se apaixonou pelo reggae, começou a costurar o cabelão em dreads e a fazer pequenos vídeos para a internet — que acabaram compartilhados por páginas importantes, como a rádio Som Jah, e mais tarde, a Rap Nacional.

Poesia visionária que atinge o coração

Foi por meio do sucesso desses vídeos que Triz também conheceu Cesar Gananian, diretor e produtor executivo do clipe de “Elevação Mental”, além de outros parceiros profissionais (e amigos queridos) como o diretor e produtor musical Pedro Santiago; Davi Valente e Camila Picolo, responsáveis pela fotografia do vídeo; e o músico André Whoong, do selo Rosa Flamingo — liderado pela Tiê. O ambiente de trabalho leve e amoroso faz com que Triz, que até pouco tempo nunca havia visto uma câmera de verdade tão de perto, já não consiga se imaginar trabalhando em uma loja ou cursando uma faculdade. Acredita apaixonadamente na própria arte, e no poder de transfor(a)mar da música que faz com a ajuda de outras tantas pessoas maravilhosas.

Eu acho que é mulher, eu acho que é homem, eu acho que você tem que vestir esse uniforme

Falar sobre identidade de gênero, certamente, já se tornou uma constante na vida de Triz. Em um vídeo recente na sua página do facebook, explica por 20 minutos alguns dos pontos mais importantes sobre o assunto, como a diferença entre o que rola na mente e no corpo de uma pessoa não-binária. “Gênero é como você se sente, se expressa, se enxerga, de dentro para fora. Se você tem seios, pênis, vagina, nada disso tem a ver com gênero. Biologia é carcaça, você passa o bisturi e modifica. Mas a sua cabeça ninguém pode modificar”. E continua: “nos moldes da sociedade, a minha mente não se encaixava com os padrões femininos, tampouco com os masculinos. Até que eu descobri esse termo, essa condição, essa causa que é a não-binariedade de gênero”. Nem masculino, nem feminino, Triz é uma pessoa não-binária de gênero neutro. “Uma mistura de tudo ou um resultado de nada”.

Mas, e os pronomes de tratamento? “As pessoas perguntam muito, eu tô até dando umas palestras (risos). A questão dos pronomes varia de pessoa para pessoa. Eu, por exemplo, me sinto muito mal com o A, mas não me sinto um cara, então o O não me contempla. É de certa forma um impasse muito presente na língua portuguesa, mas é também pra isso que existe a linguagem neutra, que é só trocar o O ou o A pelo E. Como em linde ou ansiose. Na forma escrita, sempre procure usar o E, e nos casos de Ele/ela, substitua por ilo, ile ou palavras como a pessoa”.

Foda-se se te incomoda, é o meu corpo, a minha história

Liberdade e segurança para falar sobre o assunto, no entanto, não vieram gratuitamente. Foram anos de depressão, episódios de síndrome do pânico, se escondendo por trás das roupas que lhe causassem o menor desconforto possível com o próprio corpo. Não ia com meninos, nem meninas, sempre muito sozinha. “Nunca me reconheci enquanto mina e a palavra mulher sempre me gerou muito estranhamento. Tenho essa memória de desde muito nova me sentir terrível quando me chamavam de menina e desviar a conversa dizendo que eu era criança. Eu era eu. Também sempre tive pavor de vestir calça jeans, daquelas que marcam bem o corpo. Eu me sentia muito mal e tinha até taquicardia toda vez que precisava andar na rua”.

Foi só de uns três anos pra cá que as coisas passaram a, pela primeira vez, se encaixar. Por volta dos 15 anos, começou a se relacionar virtualmente com uma menina que usava roupas masculinas, e sentiu atraída por seguir a mesma onda. Comprou cueca, shorts e uma regata. “Quando cheguei em casa e me vesti, chorei. Então disse pra minha mãe que ia ser isso, doei minhas roupas femininas, ganhei outras masculinas de vizinhos e familiares, e reformei meu guarda-roupa só com as coisas que eu queria”.

Você não precisa entender, só precisa ter respeito

Mas Triz ainda não estava feliz enquanto “mulher bofinho lésbica”, como ile mesme diz. Não lhe cabia. Então foi estudar, pesquisar, e encontrou a Hugo Nask, hoje sua amiga, e pessoa não-binária que com um canal no youtube, contribui para um entendimento mais profundo das questões de gênero, dentro e fora da comunidade LGBT. De repente, se viu militante, motivada a compor e cantar sobre os terríveis episódios de agressão contra travestis e pessoas trans. “Tive a sorte de nunca ter sofrido nenhuma violência, de ter uma família que me aceita e respeita. Mas estudar e me engajar no assunto foi essencial para que ninguém jamais me humilhasse ou montasse em cima de mim. Tenho bastante respeito na quebrada, e depois da repercussão do clipe, muita esperança nas pessoas. Se você não sabe como é esse rolê todo eu quero estar aqui para poder te pegar mão e explicar”.

Onde isso vai parar? / Se eu nasci com dom eu sei que eu vou continuar / Eu cheguei na cena / fiz um poema / pro seu coração escutar

Apesar da felicidade de ver “Elevação Mental” — que tem beijo gay, travestis, trans e até a sua própria figura — atingir (e afetar) tantas pessoas, dentro de uma taxa baixíssima de dislikes, mas muitas mensagens de amor, Triz pede que não e coloquem dentro de uma nova caixa. Pois ainda deseja compor sambas, MPB e até carimbó, sempre fluindo entre gêneros musicais. Pois também escreve sobre os seus próprios conflitos, medos, revoltas, sobre as pessoas que todos os dias passam fome na rua, sobre os bailes soundsystem que frequenta aos fins de semana. Sobre amor.

O preconceito não te leva a nada / não seja mais um babaca de mente fechada / Porque o ódio mata / só o amor sara / De qual lado você vai ficar?

“Quando as pessoas me perguntam como eu consegui tão rápido, quando tem tanta gente aí tentando há 20 anos, eu digo que é todo esse amor que eu sinto por mim. É esse amor que me fez e faz ter tanta sorte. Depois que eu descobri meu gênero e soube que era bom não ser igual a maioria das pessoas, eu me tornei alguém muito orgulhose de si mesme. Essa confiança me dá vontade de fazer história, de ‘Vamo? Vamo’. Eu quero ter inspiração, fazer história, deixar fluir sem fazer muitos planos, e ter fé na minha arte”.

E fé nas próximas gerações, você tem?, eu pergunto. Triz responde “As novas gerações estão incríveis, as crianças estão cada vez mais inteligentes e entendem perfeitamente essa quebra de papéis. Eu acredito na evolução e essa abertura de mente e coração para mim está constatada em números, no meu clipe. Se essa mensagem não fosse real, não teria alcançado tantas pessoas. Nós só precisamos dessa abertura para a compreender a vivência do outro, nos respeitar e viver numa boa”.

Triz avisa que os shows maiores estão marcados a partir de novembro.
Até lá, fará shows menores e participações, como no dia 17, quando sobe
no palco para cantar com a Tiê em uma apresentação no Rio de Janeiro.
Você pode acompanhar a sua agenda pelas suas redes sociais.

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