Projeto Primário

Inspirados pelo encontro com Eduardo Costa, diretor criativo do Brechó Replay, contamos um pouco mais sobre os bastidores desse projeto de (re)visitação a nós mesmos. Por Fernanda Cintra.

OVNE História
OVNE
5 min readAug 11, 2017

--

Para aqueles mais próximos do hype, o Brechó Replay não é novidade. Com apenas dois anos de existência — e experiência — a plataforma, que já coleciona 39 mil seguidores no Instagram, se consagrou em tempo recorde como um canal de representatividade e inovação em moda.

Eduardo Costa, diretor criativo e sócio fundador do Brechó, sempre gostou tanto de moda — faculdade que só não cursou por falta de grana — quanto de contar histórias. E a sua, que é também a do seu negócio, começou cedo, aos 10 anos, quando entrou para o conservatório de ballet em Campinas, onde morou por praticamente toda a sua juventude, e depois aos 20, quando deixou a companhia onde dançava para fazer um curso de cabelo. Pois o universo da beleza ainda se aproximava, de muitas formas, do da moda.

Cresceu como cabeleireiro “bapho” em salões chiques-de-madame, mas só até perceber que aquele padrão estético, das meninas loiras e ricas, não era o seu. Assim, em busca de uma linguagem mais próxima da sua própria narrativa, passou a trabalhar com cabelos crespos, cacheados, e tratamentos mais naturais, dentro dos parâmetros de low e no poo. Em paralelo, junto com a mudança definitiva para São Paulo, adquiriu o hábito de comprar em brechós por motivos de “peças únicas”, “onda hipster-vintage” ou “pira étnica”. E desse jeito, entrou para a moda, enxergando ao lado de um ex-sócio, a oportunidade de montar um brechó.

Para início de conversa,

desejavam falar sobre a própria infância, entre outras histórias pessoais. Clicavam um ao outro, iam para rua, criando imagens sem requinte, maquiagem, em uma dinâmica tão livre quanto espontânea. Com o tempo — e a preocupação com beleza e fotografia — o “set” foi ficando cada vez mais cheio, sempre de amigos. Perceberam que poderiam incluir outras narrativas, e inspirados pelo boom dos influenciadores digitais, começaram a convidar pessoas que, apesar de não serem modelos, eram lindas e super interessantes aos olhos do Brechó.

Segue o baile

Com a saída do (ex-)sócio, Edu passou a trabalhar “sozinho” na direção do Replay. Digo sozinho com muitas aspas, pois a essa altura o Brechó já havia se desenvolvido para além de uma marca, e já contava com, por exemplo, um produtor — o Ricardo Boni — na equipe. Começavam a ser procurados por artistas, como Mc Linn da Quebrada e Mc Soffia, para jobs de styling e produção de video clipes. E Edu, a cada dia mais íntimo da conceituação e direção criativa dos ensaios, sentia o desejo de retratar toda uma cena, feita por pessoas que iam, vinham e intervinham na cidade — muito mais do que looks ou tendências. Pessoas que geralmente estavam à margem. E consequentemente, à frente de movimentos negros, sociais, feministas, LGBTs e mais.

2017 trouxe planejamento, profissionalismo e parcerias com marcas maiores como Natura, Nike, Adidas, e agora, a AHLMA. As mudanças estruturais, que Edu vê com nitidez a partir do ensaio Mundo Negro, trouxeram conceito, organização, e o entendimento de que poderiam novamente desconstruir o “produto” que o Brechó oferece por meio de ensaios performance que conseguissem dar voz e movimento às pessoas vestidas de Brechó Replay — sem perder a deliciosa vontade de sair juntando um monte de roupa com um monte de gente para criar o novo.

Reciprocidade

é palavra-chave. Edu conta que a inspiração vem daqueles que estão muito próximos, como a própria Linn da Quebrada, bicha transviada que lhe ensinou um tanto sobre (des)construção; meninas maravilhosas como Camila de Alexandre, Amanda Schön e Renata Brazil com suas militâncias feministas, além do próprio Boni, do @jiromba1. Outra grande influência é a festa de empoderamento negro Batekoo, onde se sente uma pessoa normal, que não precisa provar nada para ninguém, e a tal da reciprocidade acontece na forma de afeto, carinho sexual e troca de energia.

No trabalho, idem. Para fortalecer as relações de trabalho, Edu aposta na horizontalidade do seu negócio, ainda que em meio a um mundo essencialmente vertical. Toda a equipe se envolve, de alguma forma, com o processo criativo que permeia a plataforma. Já os garimpos acontecem conforme o mood do momento — que no caso do Projeto Primário, ganhou o perfume dos anos 60 — e vai a lugares mais distantes da capital, em busca de peças mais baratas cujo valor acessível faça sentido para todxs. Um negócio feito por pessoas e para pessoas.

O Projeto Primário,

por sua vez, me parece um desdobramento natural de se trabalhar a partir das tantas narrativas de luta e empoderamento pessoal que movimentam o Brechó. Nasceu da experiência do próprio Edu de perceber fragilidades que, na sua cabeça, já deveriam ter sido superadas. Conversando com amigos sobre o assunto, entendeu que à sua volta orbitavam muitas outras histórias de bullying, machismo, dolorosas quebras de padrão, sexualidade, aceitação da cor e marginalidade. Edu jamais usou essa palavra, mas eu diria que o Projeto Primário é a expressão visual de um profundo processo de autoconhecimento que o levou a lugares difíceis, como o medo da solidão. Mas a (re)visitação desses lugares, por outro lado, liberta. E questiona o que teria acontecido se cada uma dessas pessoas pudesse ter acessado certos benefícios que, por estarem resolvendo problemas maiores, decorrentes da própria exclusão, deixaram de acessar. A proposta, agora, é experimentar a vida, em vez de formar a vida.

O primeiro ensaio colava formas geométricas no corpo dos modelos, correlacionando cores e formas primárias aos limites morais que norteiam a nossa sexualidade e a ideia de que está errado se sentir atraído por um outro corpo parecido com o seu. Depois, chegou a vez das meninas protagonizarem em azul-vermelho-e-amarelo, texto e imagem, a experiência de ser mulher.

E o próximo desdobramento do Primário acontece amanhã, dia 12 de agosto, durante o evento de aniversário da Malha, em uma parceria AHLMA + Brechó Replay. Será montada uma grande sala de aula, ocupada por pessoas vindas de diferentes locais de fala — e intersecções entre Rio e São Paulo — , que servirá de palco para uma mescla de festa, desfile, instalação e performance, cujo resultado só iremos entender quando acabar e puder ser revisitado. O happening é aberto ao público e acontece a partir das 18h no galpão da Rua General Bruce 274, em São Cristóvão. Vamos juntxs?

--

--