Miniaturas que contam e reverberam histórias

Isabel Gewehr
Página Rosa
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8 min readApr 25, 2023

Mini Mundo Encantado e Parque Histórico de Selbach reforça identidade étnica e o reconhecimento da comunidade

“Hoje veio um jornal pra mim que me dói muito.”

É assim que José Lorivaldo Flach, de 81 anos, vem até mim. O jornal em questão é o “Jornal da Integração”, em circulação há mais de quarenta anos em Selbach e região. Nesta manhã de sexta-feira, feriado de Tiradentes, ele recebe a sua última edição física.

“Aqui”. Ele caminha lento, procura o jornal e traz aos meus olhos. “Última edição do Jornal da Integração”. Lê em voz alta. “Queridos clientes e assinantes, agradecemos a confiança do nosso trabalho. Comunicamos o encerramento das nossas atividades nessa última edição do Jornal Integração”. Aquele silêncio de quem pensa. “E eu tenho desde o nº 1 deste jornal, de 1979”.

Ali em mãos, Seu Lorivaldo carrega uma das fontes de pesquisa para a arte que pratica há mais de duas décadas: a miniatura de igrejas e centros históricos dos municípios que são serpenteados pelo Rio Jacuí.

O trabalho artesanal resultou no Mini Mundo Encantado e Parque Histórico de Selbach, localizado no interior do Rio Grande do Sul, há cerca de 82 km de Passo Fundo. Idealizado a partir de 1997, o espaço tem mais de 2,2 mil m² e 35 miniaturas que representam uma comunidade colonizada por descendentes de alemães.

O parque faz parte da Rota das Terras Encantadas que contempla diferentes espaços históricos e culturais da região. (Foto: Isabel Gewehr)

Selbach possui sete localidades na área rural, todas elas com as primeiras capelas representadas no parque: Linha Floresta, Passo do Padre, Santa Teresinha, São Pascoal, Arroio Grande, Santa Isabel e Bela Vista. Além disso, os municípios de Colorado, Selbach, Ibirubá, Tapera, Não-Me-Toque, Espumoso, Cruz Alta e Quinze de Novembro tem aspectos culturais, geográficos e históricos incluídos no espaço.

História que ganha vida

A maior parte da população selbaquense carrega as origens e costumes da cultura alemã, incluindo a língua — que há menos de três gerações não dominava o português.

Na ausência de historiografias e de historiadores locais, construções como a de Lorivaldo se transformam em protagonistas para reforçar uma identidade e trazer senso de pertencimento à uma comunidade.

Isso se apresenta até mesmo entre uma das miniaturas — a da residência do Coronel Jacob Selbach, que dá nome ao município. “Temos a réplica da casa dele em Bom Princípio. Ele nunca veio pra Selbach, mas nós homenageamos ele”, relata Ana Cláudia Flach, filha de Lorivaldo e braço direito na manutenção do espaço.

Ana Cláudia Flach (filha), Adi Maria Flach (esposa) e José Lorivaldo Flach ao lado das representações de Maria e Jacob Selbach junto a sua casa. (Foto: Divulgação/Jornal O Alto Jacuí)

Nesse contexto de dúvida e incerteza, memorialistas como Lorivaldo nascem com o intuito de resgatar da família e da população — geralmente os “vovozinhos” — uma memória coletiva a respeito de quem são e de onde vieram.

“Os memorialistas são esses historiadores das horas vagas. Entrevistam pessoas e constroem essa imagem e memória da colonização — o desenvolvimento da cidade, do município, das primeiras famílias e isso tudo baseado em uma memória dessas pessoas”, analisa o historiador e mestrando em história João Sand (PUCRS).

João reflete que “não há nada quase sobre Selbach. Estudos, até mesmo, sobre quem é esse Coronel Jacob Selbach. Não sabemos. Ele é alemão? Brasileiro? É nessa lacuna que os memorialistas entram”.

Proporcionar o reconhecimento é um dos sentimentos que transborda da maioria das visitas que chegam ao Mini Mundo.

Ana Cláudia, que guia grande parte das visitas ao parque, relata que recebem desde aqueles que têm familiares que moravam em uma localidade de Selbach ou aqueles que identificam algum lugar de conversas com conhecidos — tem alguns que até acham engraçado o nome das vilas, como é o caso de Passo do Padre.

“A gente até conta a história e às vezes acham muito engraçado — afinal, foi um padre de Passo Fundo que ao atravessar o rio acabou atolando com o seu burro porque se negou a sair de cima dele. Ele era meio cheinho, sabe”, conta rindo.

Cada miniatura tem uma placa que conta, de maneira resumida, a história da localidade, apresentada durante a visita guiada no parque. (Foto: Isabel Gewehr)

Dos mais variados públicos, o Mini Mundo já recebeu visitantes da Alemanha e da Holanda, o que não foi problema para a família Flach.

O próprio Lorivaldo nasceu falando alemão e chegou à escola sem saber o português, enfrentando entraves durante a formação primária. Enquanto a filha Ana, como ela mesma diz, se vira da maneira que consegue. “Recebemos várias visitas de pessoas que falam alemão. O nosso alemão é mais relaxado, o deles mais forte, mas essas visitas vêm até nós muito”.

Apesar do alemão permear quase toda a história, a etnia italiana e holandesa aparece de maneira tímida, assim como a religião — evangélicos, luteranos e católicos aparecem aqui e ali nas miniaturas.

Ausência que passa a resistir

Dos 35 prédios que passaram pelas mãos de Lorivaldo, 32 deles foram feitos a partir de fotografias e pesquisas realizadas de boca a boca. Com exceção da Igreja Matriz de Selbach e o Castelo Neuschwanstein, as construções representadas no parque não existem mais.

Miniatura da Igreja Matriz de Selbach. (Foto: Isabel Gewehr)

“São todos prédios que realmente não existem mais. Foram retirados de fotografias e chegando milimetricamente muito próximo da realidade.” — Ana Cláudia

Miniaturas são 22 vezes menores que os prédios originais e revelam detalhes até da quantidade de tábuas e telhas que as construções possuíam. (Foto: Isabel Gewehr)

Essa quase exatidão é um dos causos que Lorivaldo relembra ao contar sobre a construção das miniaturas — a da comunidade de São Pascoal causou dores de cabeça e quase em briga com o pintor da capela original.

“Para a capela de São Pascoal eu contei o número de tábuas da fotografia. Fiz vezes 30 cm — o tamanho das tábuas da época — e pelas tantas tábuas descobri que a capela tinha 8 por 40”, professor de matemática por 30 anos, o olho de Lorivaldo já estava acostumado a medidas e cálculos como esse.

Depois da análise fotográfica, ele foi em busca de quem havia conhecido a capela. “Fui atrás e ele me disse: tu errou! É 8 por 30 e não 8 por 40”, com o dedo erguido, Lorivaldo me completa que “esqueci as duas tábuas do lado e aí fechava o tamanho. Errei por 10 cm”.

Inicialmente as miniaturas eram confeccionadas com papelão e entre 2002 e 2005 foram substituídas pelo alumínio, material com maior resistência ao tempo apesar do preço elevado — cerca de R$ 90,00 o m².

Primeiras miniaturas foram confeccionadas para a Prefeitura Municipal de Selbach e foram expostas em feiras do município. (Foto 1: Arquivo Pessoal | Foto 2: Isabel Gewehr)

História familiar que aproxima

Junto às miniaturas, Lorivaldo trouxe para o terreno — que abriga a própria casa aos fundos — outras duas residências: a Casa Urban, de Linha Floresta, interior de Selbach, e a Casa Weschenfelder, vinda de Venâncio Aires.

Foi na sala da Casa Urban que ocorreu o casamento dos pais de Lorivaldo. Desmontada e remontada tábua por tábua, ela abriga o passado desde os itens que resistiram ao tempo até o cheiro característico do antigo.

“Temos isso aqui porque não foi feito o que geralmente é feito: lenha; queimar; estragar”, pondera Lorivaldo ao apontar para a cama de madeira no canto de um dos cômodos da casa Urban.

Pais de Lorivaldo se casaram na Casa Urban, no interior de Selbach. (Foto: Isabel Gewehr)

Entre relíquias familiares, se escondem roupas, rádios, relógios, utensílios de cozinha da época e até mesmo bonecos feitos com cimento para representar os membros da família.

Com uma escada que leva ao sótão, uma área dedicada à educação e à religião se esconde. Nela, todas as edições do primeiro ano de circulação do Jornal da Integração estão encadernadas em um único livro — algo sagrado ao professor aposentado.

Casa de pedra foi apelidada de “Casa Weschenfelder” por pertencer a família da avó de Lorivaldo. À esquerda, representação da família. (Foto: Isabel Gewehr)

Ao lado da Casa Urban, a Casa Weschenfelder se apresenta como o espaço “onde meu vovô foi namorar minha vovó”, relata saudoso.

Trazida em 1981, todas as pedras e tábuas do assoalho que compõem a cozinha da residência são originais. Numeradas, elas foram montadas exatamente como eram.

Considerada o ponto de partida da família, Ana Cláudia diz afetuosa que tudo começou “aqui nessa casinha”. Filha adotiva, ela acompanha tudo desde os três anos. A história a encanta muito e confessa que está “incumbida a seguir essa história, mas isso eu pretendo fazer”.

Pai e filha guiam juntos o espaço. Ao fundo, miniatura e Igreja Matriz de Selbach original ficam no mesmo enquadramento e posição. (Foto: Isabel Gewehr)

O que toca as mãos

A construção da história de Selbach acaba por atravessar a história da família Flach. Em um ciclo de trocas, Lorivaldo se torna, também, fonte para historiadores. “O historiador utiliza desse material, das narrativas orais, para ir costurando com as informações que a gente tem a partir dos documentos”, explica o historiador João Sand.

Essa trajetória não começou com o Mini Mundo — é construída desde a juventude, em que Lorivaldo ocupou cadeiras ativas em Selbach. Do garoto no campo sem acesso à educação ao professor com pós-graduação que virou vereador, ele quase chegou ao cargo de prefeito.

“Sempre procurando o melhor para todos”, as motivações que o envolvem são respondidas com aquele jornal em mãos. O Integração — a última edição. “Tem certas coisas que não devem ser perdidas. E para não perder essas histórias, tá na hora de alguém escrever elas”, reflete o aposentado. “E a Ana tem que me escrever ligeirinho o livro para contar como foi tudo. Amanhã depois o pai não tá mais ali e a metade vai ser perdido”.

Lorivaldo “pesquisava nos jornais porque é uma coisa que tu pode ler e depois ver de novo e ver de novo” e “onde vamos ler essas coisas? Como é que vou ler essas coisas?”, reflete ao passar os dedos pelas manchetes do jornal.

Com uma queda no público depois do período crítico da pandemia, as lembranças felizes permanecem nos meses em que recebiam de 30 a 40 pessoas por semana no parque — principalmente quando foram contemplados com um totem da Rota das Terras Encantadas, roubado no último mês.

A preocupação de Lorivaldo com o futuro do parque recai para o que fica — qual o registro palpável, para além do oral, ele poderá deixar?

“Esse é o legado que eu vou deixar, com as mãos calejadas. Com as mãos que nem parecem que era professor”, o que o faz concluir que “as duas coisas tem que caminhar juntas: o passado e o presente” porque no dia que fechar os olhos “isso tem que continuar aqui”.

Seu último pedido, por fim, é: não tira muitas fotos e nem faz muitos vídeos. As pessoas precisam vir aqui ver isso tudo.

Viva uma pequena amostra do Mini Mundo Encantado e Parque Histórico de Selbach.

Reportagem produzida pela acadêmica Isabel Gewehr para a disciplina de Jornalismo Cultural, ministrada pelo Prof. Dr. João Vicente Ribas do curso de Jornalismo da Universidade de Passo Fundo (UPF).

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Isabel Gewehr
Página Rosa

Estudante de Jornalismo na Universidade de Passo Fundo. Apaixonada por palavras e o poder delas quando unidas.