Palavras nutritivas: entre a performance e a didática de Nara Marley Alessio Rubert
Vê-la entrar naquela videochamada foi voltar para uma das aulas de literatura de meu ensino médio. Com um sorriso sincero e com o brilho no olhar de quem sabe muito e ama o que sabe, eu estava mais uma vez cara a cara com a professora Nara Marley Alessio Rubert.
Dessa vez sem a sua inesquecível mala de rodinhas cheia de livros e, agora, aos seus 52 anos, ela seguia muito parecida com a mulher que, duas vezes por semana, entrava na sala de aula 01 do Centro de Ensino Médio Integrado da Universidade de Passo Fundo para discorrer apaixonadamente sobre os livros que uma vez já tinha lido, não fosse uma mecha de cabelos alvos que agora lhe caía ao lado do rosto. Só que, dessa vez, ela estava sentada na posição de entrevistada e era eu quem tinha que guiar a nossa conversa.
– Então, pra começar eu acho que dá pra tentar entender um pouco mais como a Nara Marley se apaixonou pela literatura e pelas letras… — arrisquei por uma resposta mais testemunhal.
– Eu descobri que a gente tem uma tendência muito pessoal pelos gostos que a gente direciona, porque eu não sou de uma família de pessoas que desenvolviam a arte, né, — ela me respondeu e, por um breve instante, pude ver uma expressão um pouco mais sofrida por trás das lentes de seus óculos — meus pais são agricultores, trabalhavam com a terra, viviam no meio rural e… Eu tenho uma irmã mais velha que seguiu a área da educação física e da dança. Área, inclusive, que eu também desenvolvi. Mas, eu acho que é uma coisa bem… Vou usar até uma palavra: uma questão de paladar mesmo.
E foi a partir dessa frase que eu conheci a parte até então oculta da história da Nara Marley.
Como o acesso aos livros não era algo muito fácil e a dificuldade em consegui-los acabou por atraí-la ainda mais. Como ela se encantou por eles, assim como pelos jornais e revistas. Além de como ela se encantou com a simplicidade pela primeira vez através do livro “As Aventuras do Avião Vermelho”, de Érico Veríssimo. Enquanto revivia momentos de sua pré-adolescência, ela comentou que se encantava com “como determinadas palavras simples que pareciam e que talvez eu até usasse de uma maneira muito corriqueira, organizadas de uma tal maneira, conseguissem fazer eu visualizar cenas, imagens, sentimentos”.
E a simplicidade foi uma das questões que nós abordamos ao longo da conversa. Se apoiando em autores como Mário Quintana e Fernando Pessoa, a professora explicou que julga “mais desafiador quando você consegue transformar um tema simples com um vocabulário relativamente simples em algo encantador e relativamente breve”. Isso é algo que ela leva para a vida, tanto buscando descomplicar o mundo encantado da literatura, quanto tentando assumir uma postura despojada e “viver de maneira descomplicada”.
– De modo geral, minha vida pessoal, minha existência, ela é pautada pela simplicidade. Eu gosto de muitas coisas relacionadas à natureza, né. Eu gosto de fazer trilha no mato, eu gosto de plantar grama, eu gosto de cuidar de jardim. Eu gosto de muitas coisas muito simples… Relativamente simples. Eu gosto de sentar com meu pai e minha mãe e ficar contando e ouvindo histórias. — Ela contou em uma quase poesia árcade, como as que ela trazia em aula.
Agora mais descontraída, a Nara Marley revelou que adora ler “ficção de jornalista”. Interessada pelo que ela chama de “perfil curioso”, disse que “quando jornalista envereda pela veia ficcional, eu enxergo um pouco de um relato histórico junto”.
Uma artista na arte professoral
Apesar de formada em Ballet Clássico no Ballet Vera Bublitz e de ter muitas publicações ao longo de sua graduação em Letras pela Universidade de Cruz Alta (Unicruz) e de seu mestrado e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a professora Nara não se considera bailarina, nem escritora. Ela mesma fala que já leu tanta “coisa maravilhosa” que não acha que conseguiria “compor nada à altura”.
Isso, contudo, não significa que ela não seja uma artista.
Assumidamente apaixonada pelo ensino da literatura, ela disse que acredita “que tem algumas aulas que são performáticas e que aquilo que acontece naquele momento da aula é um sopro artístico”. Mesmo agora enquanto escrevo, lembro de como a professora conseguia trazer uma energia diferente para a sala e fazer com que a grande maioria de meus colegas ficassem hipnotizados pelo que ela tinha a dizer. Portanto, não foi surpresa ouvir que se algo a afastasse dessa sua arte seria como se estivessem tirando uma parte dela.
Em nossa longa conversa, ela também me apontou como a expressão funcionava como inspiração para os seus trabalhos. Seja representando suas emoções através do movimento ou da palavra, ela acha “muito importante que as pessoas consigam transmitir o que sentem”.
Se alimentar das letras sem comer palavras
Apesar da postura extrovertida que a professora Nara Marley adota em aula, ela própria se vê como uma pessoa que aprecia o silêncio e o isolamento. Foi o seu temperamento, inclusive, o momento em que os livros a acompanharam e seguem acompanhando.
– Eu usufruo da solidão porque a solidão é um momento de criação intelectual, né. Porque a gente que trabalha com as letras lê bastante, mas escreve bastante também, tem uma produção intelectual. É o momento de absorver as leituras. — Ela afirmou com uma leveza na voz.
É como se a literatura tivesse uma importância quase nutricional para a vida da Nara. E ela ressalta que “antes ainda de ela ser a minha vida profissional, meu ganha pão, meu trabalho, ela foi me alimentando antes, como uma admiradora e consumidora mesmo”.
Então, para não deixar essa entrevista desnutrida de sentido, eu precisei perguntar:
– E qual fome você acha que a literatura te satisfaz?
– Hum… Os gritos que eu não posso dar, porque o cuidado com o outro, a gente tem que preservar. Os gritos, né. Os xingamentos que a gente não deve fazer. Ela permite isso: os gritos, os desabafos e os xingamentos — eles estão ali. Talvez eu levaria duas horas pra dizer isso que ele disse em duas frases… Então ela te dá aquele sopro de vida. Pronto. É isso. Eu sentia, mas eu não tinha conseguido traduzir.
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Entrevista perfil originalmente realizada e editada para a disciplina de Técnica de Entrevista, do curso de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação (FAC) da Universidade de Passo Fundo (UPF). Você pode conferir uma versão estendida da entrevista abaixo: