Precisamos do nosso Eduardo Snowden.

Victor Veloso
Pílula Tecnológica
4 min readAug 24, 2016

Com o apagar da pira olímpica no Engenhão, se encerra o ciclo dos mega eventos do Brasil. Durante esses 16 dias de jogos olímpicos, as manchetes se ocuparam das histórias incríveis de superação, dos recordes quebrados, das vaias e criatividade da torcida brasileira, além do papelão promovido por Ryan Lotche. Ainda que o evento tenha sido considerado pela imprensa e pelo público um sucesso, a grande questão se volta para qual será o legado deixado por essas olimpíadas.

Muito se temia que um atentado terrorista pudesse ocorrer durante as competições. Tanto na Copa como nas olímpiadas, esse medo embasou o fortalecimento da militarização do ciberespaço brasileiro, alegando como justificativa que seria por esse meio que as células terroristas poderiam se mobilizar e planejar os ataques. Se formava assim o discurso que deixaria um dos legados mais sólidos dos mega eventos: O legado da vigilância.

Centro Integrado de Controle e Comando do Rio de Janeiro. Crédito: Yasuyoshi Chiba/ AFP

O discurso de militarização da Internet brasileira reside desde 2008, quando o ciberespaço foi colocado como elemento estratégico para defesa nacional nas diretrizes gerais das forças armadas. De lá pra cá, os investimentos, políticas e leis para a vigilância das comunicações apenas aumentou.

No Congresso, a CPI dos Cibercrimes propõe leis que atacam a liberdade de expressão e privacidade no meio digital. A lei antiterrorismo, aprovada em março deste ano visando as Olimpíadas, também promove brechas para abusos. A Lei de interceptações de comunicações, ainda que seja restritiva na prática, é utilizada de forma abrangente pelos órgãos de segurança, como mostrado pelo InternetLAB no relatório Vigilância sobre as comunicações pelo Estado brasileiro.

Na parte material, atores como a Agência Nacional de Inteligência, a Polícia Federal e Polícia Militar possuem maquinários de vigilância. Entretanto, ainda que a regulação para o uso deste equipamentos exista, a falta de transparência de como esse uso é feito e inúmeras denúncias de abusos por parte destes órgãos abrem um cenário preocupante.

Um passarinho me contou.

O processo que o Brasil passa hoje é bastante semelhante ao que os Estados Unidos passaram no pós 11 de setembro. A supressão de direitos civis e os crescentes investimentos na vigilância estatal sempre foi justificada para a caça ao terrorismo internacional. Entretanto, a falta de transparência, baseada na segurança nacional, sempre impediu que esses programas tivessem alguma efetividade ou que uma vigilância indiscriminada era feita.

Foi apenas com Edward Joseph Snowden que isso mudou. Ed abandonou sua quase perfeita vida das praias havaianas, com um salário astronômico e uma família feita, para viver sozinho em exílio em algum lugar desconhecido na gélida Rússia. Vivendo um script de filme de ação, Snowden decidiu demonstrar ao mundo o quão longe a espionagem de um Estado pode chegar. Um exemplo vivo de sacrifício de uma vida para uma causa maior.

Créditos: WIRED

Ainda assim, vale a pena ter essa vigilância pra nos protegermos certo? Na verdade, não existem evidências sólidas que essa coleta de dados nos deixe mais seguros. A NSA não conseguiu provar sequer um caso de ataque terrorista que ela tenha impedido por meio da coleta massiva de dados. Um relatório de 2013 da própria agência sugeriu que a tática fosse reduzida pelo alto custo e baixa eficiência.

No caso do Brasil, a situação parece ser a mesma. Os indícios vêm dos constantes hackings que sites do governo vêm sofrendo a cada semana nos últimos anos até o sequestro de computadores da ANATEL por hackers. Essa situação mostra que ao mesmo tempo que a vigilância cresce, a segurança não parece aumentar.

Entretanto, a pesquisa em torno deste tema sempre está cercada pela incerteza. A falta de transparência do governo brasileiro não demonstra se essa política é eficiente ou não, além de não existir prestação de contas para nenhum órgão em que a sociedade civil esteja envolvida. Precisamos, urgentemente, de alguém que ponha às claras o que todo o invólucro da segurança nacional vem mantendo a opinião pública afastada. Precisamos, urgentemente, de um Eduardo Snowden aqui em terras tupiniquins.

Assim como nos Estados Unidos, nosso Eduardo poderia ser tratado como um traidor, alguém que falou demais e colocou em risco a vida de pessoas e quiçá uma nação inteira. Entretanto, a lógica da vigilância não se coloca como a melhor política para a segurança coletiva. É uma lógica que marginaliza determinados grupos, pré-selecionados com base em preconceitos construídos por estruturas opressivas da nossa sociedade. É uma lógica que torna todos suspeitos até que se prove o contrário, tirando o pilar fundamental do princípio da inocência da nossa democracia. É uma lógica que nos torna vulnerável ao que pensamos ser nossa entidade protetora: o Estado.

Ninguém quer que um terrorista acabe com vidas inocentes. Mas, sendo o objetivo primário do terrorista a instauração do medo e da paranoia, não seria a vigilância em massa um indicativo de vitória? Não sei. Fica pra outro texto. Enquanto isso, em alguma sala escura de um prédio da ABIN ou da Polícia Federal, nosso Eduardo deve estar tendo as mesmas dúvidas. E talvez, elas sejam acompanhadas da noção de que sua vida possa revirar da mesma forma que o ex-agente da NSA. Espero que nosso Eduardo possa entrar para história da mesma forma que Edward entrou. E que isso seja a tempo.

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Victor Veloso
Pílula Tecnológica

Pesquisador em tecnologia, ciências sociais e outras ficções.