Vigilância: Porque me preocupar se não tenho nada a esconder?
Meses atrás, um conhecido meu recebeu uma multa por estar dirigindo acima da velocidade em uma avenida pela madrugada. Mas ele não foi a lugar algum naquela noite, ficou em casa sozinho e trabalhando durante a madrugada toda. Conclusão: sua placa havia sido clonada. Ao tentar resolver a situação, a companhia de tráfego afirmou que não era possível acatar a reclamação, já que não haviam provas de que ele permanecera em casa. Ao sugerir que a companhia consultasse a localização de seu celular naquela madrugada junto com seus registros de rede, o órgão se negou a utilizar esses dados por serem facilmente forjados.
Essa história me fez refletir um pouco de como em geral os governos que fazem algum tipo de vigilância em massa se utilizam de nossos rastros digitais. A impressão que se tem é de que o intuito exclusivo é de criar e embasar suspeitas. É claro que as vezes essas suspeitas podem ser confirmadas e crimes ou atentados serem descobertos antes da hora. Mas a que preço?
A ideia de que há “inocência até que se prove o contrário” é muito importante em nossa democracia e em nossos direitos civis, já que ela coloca uma obrigação de se ter provas para que alguém seja condenado. Qualquer suspeita pode ser facilmente criada, ainda que o suspeito seja totalmente inocente ou culpado. Você pode suspeitar que seu irmão que sempre deixa a tampa do vaso aberta tenha deixado ela assim da última vez, mesmo sem ter nenhuma prova de que isto tenha acontecido.
O mesmo ocorre todos os dias em nossa sociedade. Muitas suspeitas são apresentadas, mas sem a apresentação de provas, condenar é impossível. Sabe aquele cara que você sempre ficava julgando que era o vilão no Scooby Doo e no final era uma pessoa totalmente diferente do que você pensava? Isso ocorre todos os dias na vida real, com pessoais reais. Obrigar que existam provas diminui a probabilidade que essas injustiças ocorram. Dessa forma, a lógica deve ser, “adquira uma suspeita primeiro, para que assim possa ser violada a privacidade e crime comprovado” e não ao contrário, certo?
Podemos acreditar num cenário ótimo em que possuímos os governantes mais responsáveis do mundo e que todos os governos que possuem mecanismos para operar uma vigilância em massa apenas se utilizarão deles para coibir o mal e promover a justiça. O que garante que isso persista e que, da noite pro dia, não tenhamos jornalistas, ativistas e minorias sendo perseguidas e tendo seu direito de expressão minado? E mesmo que estejamos no “cenário ótimo”, não há transparência que comprove isso.
Mas porque eu, que não tenho nada a esconder, tenho que me preocupar com isso? Afinal, Quem não deve não teme, certo? Mas a real pergunta deve ser: Se eu não fiz nada de errado, porque então minha privacidade está sendo violada? É fácil se sentir imune a um Estado de Vigilância quando não se faz nada de errado, ainda mais quando ele supostamente aumenta sua sensação de estar seguro contra o outro. O outro sempre carregará a suspeita. E quanto mais duvidamos da inocência daqueles que são diferentes, mais nos segregamos e criamos rupturas sociais que se retroalimentam.
Já vivemos em Estados segregadores. São raras as polícias no mundo que não trabalham suas suspeitas baseadas em preconceitos de classe, etnia, cor ou religião. E os que estarão procurando por padrões de dados e comportamento suspeitos também carregam, mesmo que inconscientemente, estes mesmos preconceitos. Quando esses mesmos agentes olham para os seus dados, eles não estão olhando individualmente cada pessoa e sim procurando um criminoso por meio de padrões de reconhecimento. E por mais inocente que você seja, se seu comportamento for parecido com o de algum suspeito, você será o criminoso. Como Edward Snowden disse:
“Com uma certa quantidade de dados, qualquer um pode se tornar um suspeito.”
E, mesmo dando um ótimo roteiro, isso não é ficção cientifica. Na madrugada de julho de 2007, forças especiais da policia alemã invadiram e revistaram o apartamento de Anne Roth e Andrej Holm. O crime? Comportamento suspeito que o fez com que a polícia o acusasse de fazer parte de uma organização terrorista. Holm foi preso conjuntamente com seis homens e ficou na prisão durante semanas. Depois de inúmeros pedidos, Anne conseguiu ter acesso a denúncia formal, mantida em sigilo enquanto Holm estava na prisão. O comportamento suspeito incluia a procura constante do termo “gentrificação”, o qual Holm, em seus artigos acadêmicos, e a organização terrorista, em seus discursos em redes sociais, utilizavam constantemente. Outro comportamento suspeito era o fato de Holm geralmente não carregar seu celular consigo todas as vezes que saia de casa. Mas a vigilância nesse caso não poderia ser tipificada como abuso do estado pela lei? Na verdade, não. A Alemanha, assim como diversos países e inclusive o Brasil, possuí uma lei antiterrorista que permite que os mais diversos tipos de vigilância sejam feitos caso haja suspeita preliminar, não sendo necessário passar por nenhuma juiz ou corte.
Mas ainda voltamos a pergunta que não quer calar: Eu, cidadão de bem, que não faço nada e não tenho nada a esconder, porque devo me preocupar que o Estado vigie todos? Não seria o caso de Holm um pequeno azar?
Alegar inocência pessoal frente ao crescimento da vigilância dos Estados é sintomático sobre o tipo de sociedade em que queremos viver. Nossa sociedade moderna estabeleceu um pacto de que seríamos liderados por governos que valorizam a liberdade de expressão e a privacidade. Ao nos abdicarmos desses direitos, perdemos em muito a qualidade da nossa democracia, já que ela só existe quando todos podem se expressar livremente suas ideias ao mesmo tempo que se pode mante-las em sigilo. Você que deve fazer essa decisão, não o Estado.
Apoiar um estado de vigilância massiva é apenas valorizar uma percepção de segurança que marginaliza de vez minorias na nossa sociedade e que dificulta ainda mais suas lutas por reconhecimento. Não é o morador de Pinheiros que poderá ser preso ao postar que “Vai tacar o terror numa boate hoje” e sim o morador de Heliópolis. Não é o MBL que tem seu movimento monitorado constantemente e sim o MTST. E mesmo que você ainda pense que vale a pena marginalizar certos movimentos, lembre-se que Holm era um acadêmico, branco e de classe média alta. Assim como imaginamos que o outro sempre carrega a suspeita maior, um dia poderemos estar categorizados como “o outro”. Até lá, cuidado. Eles estão de olho.