Lucas Diana
pó e cia.
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2 min readJul 24, 2017

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patrimônio

era ainda quase onze da manhã de domingo
telefone tocou
“alô?”
do outro lado da linha
uma voz familiar carregava o peso de três gerações
me acordou
“vô?”

“tá aí, menino?”
“pode falar”
peguei um cigarro que nunca acendi
“teu pai”
já tinha parado de contar os anos
“teu pai se foi”
de novo

quando a gente deixa de dar falta
é que as coisas sumidas aparecem
“porra, vô”
meu avô falava isso
sempre sábio
sempre certo
até agora
porque eu nunca deixei de sentir falta.
“ele deixou umas coisas pro cê”

meu pai falava que geração é que nem estrela-do-mar
você arranca um braço
e cresce outro no lugar

daquele pedaço de braço
solto
nasce outra estrela igual
mas diferente

será que a estrela se esquece do braço
(do braço que já foi dela
do braço que já foi ela)
igual meu pai se esquecia de mim
quando perdia um pedaço do fígado pro álcool?

meu avô sempre foi muito sábio
meu pai, muito sabido
sábio é o que sabe do mundo
sabido é o que só sabe de si.

será que quando uma estrela-do-mar morre
ela deixa um pouco de vida naquele braço velho?
não deve ser fácil suportar toda a pressão lá no fundo do oceano
foi por isso que você fugiu pro espaço?
porque lá
no espaço
não existe pressão?
meu avô saberia responder
meu pai só sabia de si
eu não sei de nada.

quando morreu
filho da puta
(e minha avó que me perdoe)
tava lá de patrimônio:
um fígado para o filho
forte
que deixou pra trás.

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Lucas Diana
pó e cia.

redator publicitário, poeta de merda, bom filho e cuzão.