A última página daquele caderno

Ana Casilas
P-alavras

--

Se me fosse possível começar de novo este texto, iniciado há alguns anos atrás e abandonado na última página de um velho caderno, gostaria de continuá-lo exatamente da mesma forma

Começo. Começos geralmente são resultado de um punhado de aleatoriedade — um oi sem porquê combinado a um tudo bem voluntarioso— e uma camada de fé. O que pode parecer inofensivo à primeira vista, de uma forma ou de outra se torna perigoso: você foi? você fez? você sentiu? Fôssemos sinceros, não haveriam pontos de interrogação. Quanto valem perguntas que não desejam respostas? De que valem perguntas que esperam afagos desonestos?

Penso que aprendi, aos poucos, no interregno pedregoso das relações humanas, que estamos completamente cegos. Assim, de tal maneira lançados ao caos, que fazer se não intuir.(?) Tateamos, ora com delicadeza, ora sem reservas e erramos muito mais e de formas mais variadas do que qualquer combinação matemática ou literária poderia descrever. O que resta, enfim, sobre a ponta dos dedos, senão o desamor e a vitória recolhida de expor vulnerabilidades.(?) Nunca fui pessoa de fazer balanço de contas — os números não têm a desenvoltura de alguns travessões—, mas fosse capaz de algum, talvez encontrasse em saldo devedor a dignidade a que renunciamos durante experiências amorosas. O amor romântico não tolera aquele outro, o amor-próprio e, de resto, terminamos por encarcerar, intactas e indeléveis, as melhores intenções.

Se me fosse possível começar de novo este texto, iniciado há alguns anos atrás e abandonado na última página de um velho caderno, gostaria de continuá-lo exatamente da mesma forma :

(...) essas são perguntas que não esperam respostas, porque posso ler em seus olhos que nada vai bem. Sentir em seu corpo quando, onde, agora… você para e deixa parar, se deixar ficar… como gosto de você imóvel! Tudo bem? — você pergunta — Tudo bem, meu amor, só o silêncio que se esvai lentamente. Quando foi que nos tornamos tão presentes em nossa ausência consentida? Não, não responda nada. Não estabeleça datas que não pode lembrar-se ou crie planos onde eu não possa estar. Só respire, que o essencial para continuarmos vivos é respirar.

Se me fosse possível, acredito que gostaria de preservar esta tal casualidade de palavras que tomaram forma durante uma enfadonha aula sobre a respiração celular — pequenas, rápidas e despidas; tão despidas que o tempo tem pudor. Me parece que elas foram tornando-se mais obscuras e nem a pobre autora as possui mais. Se isso é verdade, também é verdade que o texto poderia ser diferente:

“Não, não responda nada. Deixa-me manter essa ilusão guardada de que você me ouve e compreende. Deixa-me aqui, a sonhar e sentir que eu prometo que me calo ao passar. Deixa comigo só a esperança — eu lhe imploro — porque o resto já se foi. Talvez ela seja suficiente para iluminar as noites com alguns trechos esparsos de uma obra fadada a incompletude e que terminará por envelhecer nas páginas de um caderno qualquer. E, quando nem ela existir mais, então, eu peço-te: regozije-se.”

Essas seriam, também, boas palavras, apesar da brutalidade. É que a verdade, por vezes, é brutal demais para subsistir no papel. E se não me foi possível, pelo menos dessa vez, preenchê-lo com a jovialidade inacabada, espero que a possibilidade o abençoe. Às palavras preteridas, aquelas guardadas, ofereço minhas sinceras desculpas e a sugestão de que esperem, porque o tempo, pelo menos em relação às palavras, é só generosidade.

--

--