A um improvável leitor

Ana Casilas
P-alavras
Published in
3 min readOct 17, 2013

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Mãe querida,

Como vai você a família? Há muito que não tenho notícias de casa. Espero que o gato tenha se recuperado desde a última vez.

Quanto a mim, não há muito que contar. Os livros vêm ocupando a maior parte dos dias. Mas há algo sobre o que gostaria de seus conselhos: Tenho procurado um ninho. Afinal, quando encontramos um animal selvagem remexendo nossas gavetas, o mais prudente é procurar por suas crias. Um possível ninho seria confortável e acolhedor. Possivelmente um ninho é que me falta para acalmar o coração. Julgo que certo recolhimento discreto lhe faria bem. Certo é que, pobrezinho, anda precisando de uma folga. Se possível fosse lhe daria férias para tentar relaxar e, quem sabe, o pequeno esqueceria seus temores em uma praia qualquer. Infelizmente não posso fazê-lo e, então, continuo à procura de uma toca secreta para descarregar o coração. Mas não me julgue, por isso, sentimental. Se o faço é apenas para salvar-lhe a sanidade. Não, não o tome por um jovem adolescente apaixonado; para ele é como questão de sobrevivência. Então, perdoa-me se a incomodo com essa confidência. É que tenho andado procurando um ninho e não o encontro. Estou precisando de ajuda. E o coração, se vale dizê-lo, conta lá seus 70 anos e ultimamente vêm reclamando de artrite.

Talvez você se pergunte para que é que procuro um ninho. Dito assim concordo que soa um quanto impossível. Somente a sede é capaz de nos iniciar nesse mistério. Porventura você já sentiu sede; uma sede tal que a água não sacia, uma sede que é agonia lenta. E a garganta fica seca e o pulmão já não parece inflar. Então você para e tenta saciá-la com todos os meios possíveis e, ainda assim, permanece sedento. Que é que nos sobra, então? Pois tenho sede e já não sei onde mais procurar. O resto do corpo, por sua vez, deixou-se tomar. A verdade é que já vinha esmorecendo há algum tempo. A garganta, essa continua em agonia. Em seu socorro apenas o coração. Por isso tenho medo, não sei quanto mais resistirá. Sinto que ele está cada dia mais pleno e assim, eu é que não posso seguir.

Confesso-te: tenho medo. A minha sede é de palavras e, nesse estado, nada posso dizer. Ainda que pudesse, o que são palavras diante da impossibilidade do mar? O mar está tão repleto de água; o mar está logo à minha frente, e eu tenho sede. Tanta água, tanta chuva, tamanha sede. O mar me tem sido grande conselheiro, senão a promessa inescusável. Então, após anos de carícias íntimas, eis me que escandalizo com sua profusão irremediável. Você há de pensar que não pode ser, realmente, o mar que tanto me incomoda e porventura não o seja, ainda que pudesse ser. A mim, nada me resta além da aceitação resignada. Fico aqui olhando-o e morrendo de sede, a meu modo.

Dia desses tive uma recaída e me revoltei — você sabe bem que minha natureza se retorce com facilidade-. Quis provocá-lo, lancei-lhe palavras finais, creio que tenha gritado. Mas o mar é implacável — não é? — e sequer pareceu perceber-me. Ao contrário, continuou profundamente impossível; a despeito de minhas melhores palavras. E, então, sem emitir som algum me calou. E me envergonho, mamãe. Ah, como me culpo por esse ato de doce rebeldia. Desde então tenho procurado um ninho. Lá talvez possa confidenciar essa terrível sede e sobreviver-lhe com a dignidade preservada. Não é sem relutância que a confesso aqui minha natureza covarde. Perdoa-me, mãe.Mas, de algumas ilusões precisamos para não sucumbir a escuridão.

Por tudo isso, querida, peço-te que se acaso souber de lugar seguro e apropriado para um ninho, que me avise urgentemente. Caso não o saiba, responda-me também porque preciso de palavras para enfrentar a seca terrível. Diz que sim, diz que não, diz qualquer coisa, mas diz.

Com amor,

Eu.

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